“Directiva Recursos I” e sua respectiva
transposição para o direito português
A formação e aperfeiçoamento de um Direito
processual administrativo europeu levou a que se fosse dando progressivamente
uma refundação dos Direitos processuais administrativos nacionais, dado que
essa mesma construção do Direito processual administrativo europeu acarretou um
gradual estreitamento dos pontos de contacto entre este e os Direitos
processuais administrativos nacionais. Sendo que esta refundação deu-se muitas
vezes a partir de “sugestões” oriundas do direito europeu, não havendo dúvida
no entanto que este acabou por em boa medida estabelecer a conformação dos
regimes processuais administrativos nacionais.
Nesta sede, importa sobretudo destacar a área
da contratação pública, não existindo dúvida que foi um dos âmbitos em que mais
se sente a ligação e actuação do Direito processual administrativo europeu; ora
não há que esconder que este interesse do Direito europeu pela regulação do
Direito dos contratos da Administração nos Estados-Membros não é
desinteressada, visto que uma parte notável do volume de negócios das empresas
que actuam no âmbito do mercado único europeu deriva de contratos celebrados
com as Administrações nacionais dos diversos Estados-Membros (de acordo com
estimativas divulgadas pela Comissão Europeia, o valor dos contratos da Administração
pública corresponde entre 7% a 10% do PIB da UE). Logo não é de difícil
percepção a conexão distinta que se estabeleceu entre o Direito processual
administrativo europeu e o direito contratual no âmbito das administrações
públicas, sendo que o impulso dado por parte da UE tem sido claramente no
sentido de promover um sucessivo esbatimento de fronteiras entre Direito
público e Direito privado, tentando potenciar o mais possível a cooperação, das
mais diversas formas, entre o Estado-Administração e os particulares.
A falta de harmonização das regras de
procedimento administrativo em sede de contratação pública levaria a existência
de uma interferência prejudicial a uma ampla realização dos objectivos
prosseguidos com a instituição das quatro liberdades comunitárias,
beneficiando, a ser assim, as empresas competidoras que fossem da nacionalidade
do Estado adjudicante, em prejuízo das empresas competidoras de outros Estados-Membros,
podendo ainda dizer-se que essa situação pode incentivar a existência de
conluios entre as entidades adjudicantes e certas empresas concorrentes,
ficando o interesse público muito prejudicado; logo a unificação do Direito
processual em sede de contratação pública a nível europeu concorre de forma
evidente, para uma maior eficiência no exercício da função administrativa e
defesa do respectivo interesse público de cada um dos Estados-Membros.
A legislação europeia, ciente destes riscos, desde
logo se preocupou em fixar normas comuns que deveriam ser cumpridas pelos
Estados-Membros. No entanto, não há dúvida que o que foi feito a nível europeu
nesta matéria, demonstrou ser insuficiente para alcançar os objectivos que se
pretendiam alcançar. Na verdade, a unificação europeia pretendida das regras procedimentais
administrativas de contratação pública, acha-se muitíssimo limitada à fase pré-contratual,
uma vez que existe uma tendencial liberdade legislativa, por parte dos
Estados-Membros em relação à fase de execução dos contratos administrativos. Não
obstante, não se pode deixar de frisar que ainda que não esteja em vigor Direito administrativo
europeu positivo sobre esta questão, os regimes processuais nacionais continuam
vinculados aos princípios gerais e à jurisprudência do TJUE, naturalmente mesmo
em relação à fase de execução dos contratos administrativos.
Numa tentativa de assegurar a convergência
efectiva dos direitos administrativos nacionais, foi aprovada a Directiva (CEE)
nº 89/665, de 21 Dezembro de 1989 (também denominada por “Directiva Recursos
I”), a própria directiva nos seus considerandos, destacava que uma inexistência
de convergência efectiva dos sistemas processuais administrativos dos Estados-Membros
acarreta uma manifesta contracção e dificuldade das empresas comunitárias a
tentarem competir em concursos públicos em que a entidade adjudicante pertença
a Estado-Membro que não o da sua própria nacionalidade. Esta “Directiva Recursos
I” obriga a que os Estados-Membros adoptem as regras processuais administrativas
essenciais a uma decisão jurisdicional célere e efectiva dos litígios que giram
em torno da contratação pública (art. 1º). Algumas das principais novidades
introduzidas pela referida Directiva foram: o dever de adopção de medidas
provisórias, mediante procedimentos urgentes, destinadas a corrigir a alegada
violação ou a impedir a provocação de danos aos interesses em causa (alínea a)
do nº1 do art. 2º); o dever de anular as decisões ilegais, designadamente
mediante a supressão das especificações técnicas, económicas ou financeiras
discriminatórias que constem dos documentos do concurso, dos cadernos de
encargos ou de qualquer outro documento relacionado com o processo de
adjudicação do contrato em causa (alínea b) do nº 1 do art.2º); o dever de
indemnizar os particulares lesados (alínea c) do nº 1 do art. 2º).
A “Directiva Recursos I”, é claro exemplo, da
primazia evidente concedida pela UE neste âmbito ao método da harmonização dos
Direitos processuais administrativos nacionais, sendo esta conclusão fácil de
extrair, dado o vasto leque de possibilidades concedidas aos Estados-Membros no
âmbito da respectiva transposição da Directiva; quer quanto à fixação das
entidades com competência para apreciar o recurso (nº2 art. 2º), quer quanto à
ponderação dos interesses colocados em causa pela decretação de medida
provisória (nº4 do art. 2º), quer ainda quanto à colocação de uma acção de
impugnação como preliminar de um pedido de indemnização cível (nº5 art.2º) ou
mesmo quanto à limitação do poder jurisdicional à concessão de indemnizações,
nos casos em que o contrato já haja sido celebrado (nº6 do art. 2º).
É agora essencial explicar que o art. 2º nº3
da “Directiva Recursos I”, relativo às consequências da instauração de uma
acção de impugnação de actos administrativos efectuados no âmbito de
procedimentos de celebração de contratos com a Administração está estruturado
de forma claramente incoerente e contraditória em relação aos restantes números
do referido art. da Directiva (atrás explicitados). Ora no meu entender, esta
clara divergência demonstra que o legislador europeu pretendeu de facto e
conscientemente sublinhar essa evidente diferença.
Temos que desta forma, e
presumindo que o legislador se manifestou de forma correcta, concluir que a
expressão “não devem ter necessariamente efeitos suspensivos automáticos”
presente no nº3 do art. 2º da Directiva em análise, sustentados num raciocínio
lógico e “a contrario”, que a regra geral em sede de contratação pública terá
que consistir naturalmente na suspensão automática dos efeitos do acto administrativo
destacável, por mera instauração da competente acção.
E isto porque a o referido art. ao
conceder que não é absolutamente necessário que a impugnação do um acto administrativo
destacável implique um efeito suspensivo automático, a Directiva acaba por
permitir concluir que, dados os prejuízos que a celebração e a execução poderão
efectivamente causar ao efeito útil da decisão, que é o que se pretende
defender com este regime, a proferir na acção principal, impõe-se assim como
regra de principio a suspensão automática dos efeitos dos actos impugnados.
Cabe agora perceber se o nosso ordenamento
jurídico, no vigente CPTA assegurou de forma eficaz e plena a transposição da “Directivas
recursos I”. Ora os arts. 100º a 103º do CPTA estatuem a existência de um meio
processual urgente, de natureza principal, que visa a impugnação célere de
quaisquer actos administrativos que ocorram na fase formativa dos contratos de
empreitada, concessão de obras publicas, de prestação de serviços e de
fornecimento de bens.
Ora é agora relevante tentar compreender se de
facto a posição do Prof. Vieira de Andrade, que invoca a desconformidade dos
arts. 100º a 103º do CPTA em relação ao Direito processual administrativo
europeu, uma vez que segundo o referido Prof. sendo estes arts. apenas
aplicáveis aos contratos que se encontram abrangidos pelas Directivas relativas
à contratação publica, então violariam o principio da paridade de tratamento.
Já de acordo com o Prof. Miguel Prata Roque os
arts. 100º a 103º do CPTA não se cingem apenas aos contratos administrativos
previstos nas “Directivas Recursos”, uma vez que estas apenas são aplicáveis
aos contratos que correspondam ou ultrapassem os limiares fixados pelo Regulamento
(CE) nº 1177/2009 de 30 de Novembro. Logo os arts. referidos aplicam-se,
inclusive, aos contratos cujos montantes a contratar sejam inferiores aos
limiares mínimos que geram a aplicação do regime processual administrativo
previsto nas “Directivas Recursos”, pelo que como tal possuem um âmbito de
aplicação mais vasto do que o das Directivas.
Na fase pré-contratual, quando esteja em causa
a impugnação de actos administrativos, o Direito processual administrativo
português assegura que a parte processual, na melhor das hipóteses, possa obter
uma decisão jurisdicional definitiva dentro de um prazo de 30 dias. No entanto,
quando se colocam questões de interpretação, validade ou execução de contratos
cuja avaliação pertença a jurisdição administrativa, o autor apenas pode obter
a suspensão da execução do contrato mediante requerimento de decretação de uma providência
cautelar administrativa.
Ora tendo em conta o acima exposto, e dado o
corpo (e sua respectiva interpretação acima explicitada) do art. 2º nº3 da
“Directiva Recursos I”, não nos podemos deixar de questionar se a inexistência
de efeito suspensivo automático da execução dos contratos administrativos, por
efeito de instauração da competente acção de impugnação, não configura uma
clara infracção, por omissão, do Direito processual administrativo europeu.
Pois penso que essa infracção é evidente, basta pensar que a plena execução de
determinado contrato administrativo, no decurso de uma acção que vise a sua
apreciação, implicará a privação do efeito útil da decisão a proferir na acção
principal. Penso ainda, que o tradicional argumento de que o espaço de
aplicação das “Directivas Recursos” é limitado à fase pré-contratual não
procede de forma alguma, uma vez que, ainda que tal seja verdadeiro, não deixa
também de ser verdade, que os Princípios gerais de Direito e a Jurisprudência
consolidada do TJUE exigem a garantia de efeito útil do Direito da UE, como não
poderia deixar de ser.
Agora não há qualquer duvida de
que, ainda que não se refiram explicitamente à fase de execução de contratos
administrativos, as “Directivas Recursos” demonstram bem que, no espaço de
aplicação do Direito administrativo europeu dos contratos, os critérios de
sindicância da legalidade daqueles são bem mais rigorosos e intensos do que os
aplicáveis às demais relações jurídico-administrativas, tendo em conta a sua
directa intervenção e ingerência no objectivo da plena realização do mercado
interno. Assim, o Direito processual administrativo europeu deve ser
interpretado de maneira a considerar as especificidades e necessidades
essenciais do Direito administrativo dos contratos, exigindo assim uma especial
tutela das posições subjectivas dos concorrentes e contratantes.
Não me parece que seja válida, igualmente, a
arguição de que a suspensão automática da execução dos contratos administrativos
pode pôr em “check” as próprias funções prestadoras do Estado-Administração, o
que segundo esta linha de raciocínio levaria à interrupção de inúmeros
contratos de empreitada de obras publicas, de prestação de serviços e de fornecimento
de bens.
A ser assim, por força das
sucessivas vagas de privatização, a que temos assistido, de várias funções tradicionalmente
consideradas como do Estado, e do recurso à colaboração dos particulares no
exercício da função administrativa, a definição da lei processual administrativa
ficaria assim na dependência da preservação dos efeitos jurídicos de contratos
celebrados com particulares, por força da incapacidade dos serviços públicos
para fornecer os bens necessários ao provimento das necessidades de interesse
geral. Isto, a ser verdade, denotaria que, em vez de proteger o interesse
público, a lei processual administrativa serviria para proteger o interesse
privado dos particulares, que conseguissem firmar contratos com a administração
pública.
Se o propósito de evitar os
riscos que decorrem da progressiva privatização das funções “essenciais” do
Estado,
é o principal
fundamento da inexistência de consagração do efeito suspensivo
automático, então não se descortinam razões para alarme, quando seja forçoso, podem
sempre a Administração e o beneficiário do contrato administrativo utilizar da
faculdade processual de requerer a execução provisória do contrato, mediante a determinação
de uma
providência cautelar positiva.
Carlos Neves, aluno nº 18047