domingo, 18 de novembro de 2012

A reforma administrativa autárquica: meios de tutela jurisdicional administrativa e constitucional


Deixando de parte a pertinência do processo de criação, extinção e fusão de quase mil e duzentas freguesias em todo o território nacional, particularmente no norte do país, interessa-nos saber por que meio(s) e a que título podem os autarcas atacar a decisão.

Desde logo, a Câmara Municipal de Leiria pretende avançar com providências cautelares.
A providência cautelar assume-se como um meio processual urgente e acessório, pelo que dependerá de uma causa principal a ser proposta junto do tribunal competente supervenientemente.

A figura da providência cautelar vem prevista no CPTA, nos artigos 112.º e seguintes, dispondo o art. 112.º, n.º 2, que "além das providências especificadas no Código de Processo Civil, com as adaptações que se justifiquem, nos casos em que se revelem adequadas, as providências cautelares a adoptar podem consistir (...)" na suspensão de eficácia de um acto ou norma administrativos (al. a)), de entre todas as outras providências de natureza processual administrativa, elencadas nas restantes alínas do número 2 do artigo 112.º do CPTA.

Será essa providência cautelar que, em princípio e sem prejuízo de outras possíveis, a Câmara Municipal de Leiria poderá intentar contra o Governo.

Contudo, dada a natureza acessória da providência cautelar, carece o processo de uma acção principal.
No caso, a Câmara Municipal de Leiria invoca a inconstitucionalidade da lei que aprova a reorganização autárquica. Diz o Presidente do órgão, como veicula a notícia, que "esta lei [ Lei 22/2012, de 30 de Maio ] é inconstitucional por haver discriminação negativa".

Ora, uma lei não é um acto administrativo: um acto administrativo é o acto jurídico unilateral praticado, no exercício do poder administrativo, por um órgão da Administração, ou por outra entidade para tal habilitada por lei, e que traduz a decisão de uma caso considerado pela Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta[1].
A (in)constitucionalidade da Lei 22/2012, de 30 de Maio, que é acto legislativo, nunca poderia ser apreciada por um tribunal administrativo: por um lado, a declaração de (in)constitucionalidade pertence ao Tribunal Constitucional (cf. artigos 221.º e 223.º da Constituição da República Portuguesa); por outro, a própria natureza legislativa e não administrativa da lei determina que os tribunais administrativos o não possam fazer, pelo que ficamos com estas duas faces, positiva e negativa, da mesma medalha.

A cargo do tribunal administrativo ficariam, sim, os actos administrativos que visassem a efectivação da lei supramencionada, visando produzir efeitos jurídicos numa situação (...) concreta.

Assim, o tribunal administrativo competente poderia suscitar a questão da (in)constitucionalidade dos actos em apreço, por, como alega a Câmara Municipal de Leiria através do seu presidente,  se estar perante um caso de “discriminação negativa”.
Essa “discriminação negativa” teria, em minha opinião, por base o artigo 13.º da Constituição: “[n]inguém pode ser (...) prejudicado (...) em razão de (...) território de origem” (art. 13.º, n.º 2).

A questão mais controvertida, parece-me, será a de avaliar em que medida é que os particulares residentes nas circunscrições territoriais afectadas pela Lei 22/2012 serão de facto prejudicados. Outra questão: serão só os do Município de Leiria ou todos aqueles que verão as suas freguesias extinguidas ou fundidas com outras? Outra questão ainda: aqueles que residem numa circunscrição territorial que terá uma freguesia própria, nova, distinta da actual, serão, também eles, prejudicados?
Afinal, uma das razões que subjazem à iniciativa do Governo é que a Reforma Administrativa Autárquica será “um veículo de descentralização de políticas”, conforme se vê no Documento Verde da Reforma da Administração Local (pp. 5, 7 e 8, por exemplo) e o princípio da descentralização administrativa é estruturante do poder autárquico e do Direito Administrativo nacional (v. art. 237.º, n.º 1. CRP). Mais: só o é porque se entendeu que a descentralização administrativa local permitiria ao administrador acompanhar de mais perto os administrados.

O facto da Câmara Municipal de Leiria atacar a própria constitucionalidade da lei, virá pôr em risco a validade do diploma integralmente, pelo que se levanta a questão de saber se o fundamento para travar a reforma administrativa autárquica deverá, a bem dos próprios cidadãos e municípios, a inconstitucionalidade da Lei 22/2012.

Se assim for, à providência cautelar deverá seguir-se uma acção administrativa especial de impugnação.
Os actos que visem a implementação da reforma serão - atenta a argumentação da Câmara Municipal de Leiria - nulos com base no desrespeito pelo princípio constitucional da igualdade (cf. arts. 13.º, n.º 2, CRP; 133.º, números 1 e 2, al. d), CPA; 50.º, n.º 1, CPTA).

Os tribunais administrativos serão competentes à luz do estatuído no artigo 4.º, n.º1, alínea j), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, já que há um conflito entre os interesses prosseguidos por pessoas colectivas de Direito Público.

Na eventualidade do tribunal não dar razão à autora, caberá sempre recurso para o Tribunal Constitucional (art. 280.º, nº 1, alínea a), CRP).



[1] FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Volume II, Coimbra, 2011, pp. 238-239





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