sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Análise do Contencioso administrativo dos Contratos


 A matéria do artigo 37º CPTA e a matéria do artigo 4º ETAF vieram alargar a jurisdição administrativa em termos de contratação pública, ou seja, nos termos destes preceitos, todos os contratos celebrados pela Administração pública devem ser objecto do Direito Administrativo, o que levou ao fim da dicotomia entre o contrato administrativo e o contrato de direito privado da Administração Pública.


Para entendermos a ação administrativa em sede de contratação pública analisaremos de seguida esta dicotomia.


Numa fase anterior, em meados do século XVIII em França, a Administração gozava de uma proteção aquando da pratica de actos , consequência da isenção do controlo judicial aos actos por esta praticados, sendo esse tratamento especial também alargado à própria contratação, uma vez que, segundo Conselho de Estado Francês, para certos contratos a Administração também dispunha de uma proteção privilegiada. Estávamos perante uma dicotomia que atribuía o tratamento de certos litígios a um foro especial e privativo da Administração, deixando os restantes abrangidos pelos tribunais judiciais, o que levou a um "salto dogmático"com a contratualização pública (1).


Mais tarde, a doutrina administrativa veio a debruçar-se sobre esta matéria não só em termos processuais mas também em termos substantivos, teorizando uma vincada distinção entre os contratos administrativos e os restantes. Esta teorização levou a um justificado tratamento distinto dos contratos administrativo e estabeleceu-se uma divisão no seio da contratação pública , ou seja, certos contratos passaram a ser regulados pelo direito administrativo no seio dos tribunais administrativos, enquanto os restantes são analisados nos tribunais comuns, levando a privilégios exorbitantes por parte da Administração, segundo o Professor Vasco Pereira da Silva.


Ja nas últimas décadas do século XX, estes privilégios exorbitantes são criticados pela doutrina, nomeadamente pelos Professores André Salgado Matos e Marcelo Rebelo de Sousa,  não se justificando então a distinção e, somando este facto ao alargamento do âmbito de jurisdição administrativa ao tratamento das relações administrativas e fiscais,  encontrámos o caminho certo para uma futura alteração interna.


Não obstante, o fim tão esperado da dicotomia só veio a ser uma realidade com uma  legislação sobre a matéria da contratação pública pelo Direito Europeu, aquando da realização dos objectivos da integração europeia nomeadamente pela criação do mercado único e segundo os princípios comunitário, que se baseou grosso modo no modelo alemão que consagra o acto substitutivo  do acto administrativo e tendo em conta o modelo anglo-saxónico, uma vez que este não consagra a noção de acto administrativo e por conseguinte seriam dificilmente conjugáveis com uma realidade dicotómica, dando origem a uma nova categoria de contrato de Direito Público através de novos mecanismos processuais, atribuindo uma maior importância à formação do contrato do que ao regime substantivo que aquele seguirá.


Procurou-se assim atribuir um âmbito mais alargado  de aplicação, sendo exemplo dessa regulamentação a Directiva 2007/66/CE relativa à melhoria da eficácia do recurso em matéria de adjudicação de contratos públicos.


Estas alterações foram inicialmente de âmbito processual através da introdução de um contencioso pré-contratual e posteriormente em termos substantivos com uma nova noção de contratação administrativa.


Essa configuração por parte do Direito Europeu levou consequentemente a altercações legislativas de âmbito interno,  no ETAF, que no seu artigo 1º nº 1 estabelece a regra geral sobre o âmbito da jurisdição administrativa, atendendo à relação jurídica em litígio, enumerando algumas situações que se enquadram na artigo 4º do mesmo diploma, e através deste artigo estabelece a competência dos tribunais administrativos e fiscais para julgar as situações correspondentes ao exercício da função administrativa, adoptando o critério da relação jurídica para delimitar a jurisdição administrativa, o que leva a uma conjugação entre o âmbito processual e o âmbito processual.


Assim, pela amplitude do artigo 4º do ETAF revela-se pela utilização de critérios cumulativos como o da natureza dos direitos e pelo interesse da Administração, fica abrangida toda a actividade administrativa, manifestando-se consequentemente também em matéria de contratação pública, quer estejam em causa os domínios clássicos, quer corresponda aos novos domínios da Administração prestadora.


Vejamos a concretização desse âmbito alargado:

Encontramos no artigo 4º nº1 b) do ETAF a primeira referência à contratação pública, não obstante esta referência ao contrato ser feita através do conceito de acto administrativo pela "verificação da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração”. Assim, se de um acto administrativo resultar um contrato este estará abrangido pelo âmbito administrativo, estabelecendo-se a competência da jurisdição administrativa para o julgamento de qualquer contrato celebrado com a Administração, tornando administrativa esta relação contratual, apreciando litígios relativos a contratos administrativos nas espécies previstas nos artigos 1º nº 6 , 3º e 8º do CCP. Concluímos acerca desta matéria que o legislador consagrou aqui uma ideia muito ampla de jurisdição administrativa, e independentemente  de se referir a um contrato subsequente, deve ser aplicado a todas as relações jurídicas administrativas, tal como defende o Professor Vasco Pereira da Silva.

Já no artigo 4.º, nº 1 al. e) do ETAF encontramos outro critério amplificador relativo a qualquer contratação efectuada pela Administração Pública, ou seja, estamos perante o Critério do Contrato Público. Trata-se da vertente mais ampla criado pelo legislador, uma vez que perante uma situação em que haja um procedimento público anterior ao contrato, este está automaticamente abrangido pela jurisdição administrativa, uma vez que as "questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público".

Por último, no artigo 4º nº1 f) do ETAF encontramos o critério do contrato administrativo, segundo o Professor Mário Aroso de Almeida, que se divide em  três sub-critérios também relativos à contratação pública através de uma enumeração de relações contratuais enquadráveis na jurisdição administrativa, correspondendo  à "interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo”. São eles:

1. Critério descritivo, relativo ao "objecto passível de acto administrativo" e introduzido pelo professor Cérvulo Correia, inspirado no contrato de tipo alemão que substitui o acto administrativo. Estão aqui em causa as formas de actuação ou da natureza do poder exercido;

2. Critério "especificamente" específico que corresponde aos contratos a respeito dos quais existem normas de direito público que regulam questões específicas de âmbito substantivo, ou seja, que são total ou parcialmente regulado pelo Direito Administrativo. Estamos mais uma vez perante um critério de base muito ampla, uma vez que até uma questão apenas relativa a despesas públicas ou de mero interesse público está "especificamente" abrangida por este pleonasmo.

3. Critério sobre os contratos celebrados, mesmo entre dois privados, no qual há colaboração com a Administração no exercício da função administrativa, se as partes optarem por um regime de direito público.


Concluindo, temos de proceder a uma interpretação das normas segundo o espírito do sistema na observação das alíneas e considerá-las meros exemplos da cláusula geral das relações jurídicas administrativas. Se normalmente temos de optar por pipocas doces ou salgadas, na matiné do contencioso administrativo, segundo o disposto no artigo 4º do ETAF, conseguimos encontrar um regime com uma amplitude agridoce.


Notas:
(1) cito, Lourenço Vilhena de Freitas em "O poder de modificação unilateral do contrato administrativo pela administração, Lisboa, 2007"



Bibliografia:

- de Almeida, Mário Aroso, "Manual de Processo Administrativo", Almedina, 2012

- da Silva, Vasco Pereira, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina

- Pereira, Pedro Miguel Matias, "Os poderes do Contraente Público no código dos Contratos Públicos", Coimbra Editora, 2011




Maria Luisa de Albuquerque Inácio
nº 18269

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