É no artigo 230º do Tratado da Comunidade Europeia que podemos encontrar o único preceito do Tratado que se refere ao recurso de
anulação de actos e normas, não havendo qualquer referência expressa no Tratado
em causa quanto ao âmbito da jurisdição administrativa e aos princípios
fundamentais do processo. É no parágrafo 2 do mesmo artigo que encontramos
enunciados os fundamentos de interposição do recurso: a incompetência, a
violação de formalidades essenciais, violação do Tratado ou de qualquer norma
jurídica relativa à sua aplicação e o desvio de poder.
Ao recurso de anulação, podemos atribuir a importância
de ser um dos principais meios de zelar pela legalidade da actuação da
Comunidade, visto possibilitar ao juiz pôr termo à vigência de normas ou actos
de Direito Comunitário derivado que sejam ilegais, tal como o Professor Fausto
Quadros e Professora Ana Guerra Martins referem, afirmando ainda que é “um
importante instrumento de protecção jurisdicional dos particulares”.
Decorre do artigo 230º que a função do Contencioso
Administrativo Comunitário é a defesa da Lei, sendo um sistema de natureza
objectivista, centrado na tutela da legalidade dos actos e normas
administrativas, baseado no exemplo francês.
Como qualquer sistema de base objectivista, tem como
função primordial a fiscalização de legalidade, sendo os particulares meros
auxiliares dessa mesma legalidade, pois a protecção dos direitos subjectivos
dos lesados é secundária e está subordinada à defesa da Lei, pelo que só serão
protegidos se a sua tutela coincidir com a tutela da legalidade.
É precisamente
da decorrência do artigo 230º que podemos depreender que o Contencioso Comunitário é
um contencioso de actos jurídicos, que se limita a julgar as formas de actuação
da Administração comunitária e como tal, não se coloca na hipótese de vir a
apreciar a integralidade dos vínculos jurídicos e a enquadrar o particular e os
seus direitos na acção em causa.
Professores Fausto Quadros e Ana Guerra Martins tendem
a conferir natureza jurídica de “verdadeiro recurso e um recurso contencioso”
ao recurso de anulação, e consequentemente, a considerá-lo um recurso de mera legalidade e
“um instrumento de contencioso de mera anulação, não do contencioso de plena
jurisdição”, colocando de parte qualquer vestígio da função subjectivista do
contencioso comunitário.
Contudo, a doutrina claramente diverge. Fazendo o paralelismo com o
Contencioso Administrativo português, Professor Vasco Pereira da Silva
apresentava duas teses na altura em que a acção de recurso de anulação ainda
predominava. A primeira é de que o “recurso de anulação não era um recurso”.
É necessário que estejamos perante a apreciação de uma relação jurídica controvertida para termos um concreto recurso. Desta forma, depreendemos e concordamos com o Professor Vasco Pereira da Silva, pois não podemos denominar de recurso uma figura que na sua aplicação prática de facto não o é, uma vez que o recurso compreende uma reapreciação de uma decisão judicial já sentenciada pelo juiz. Este recurso possuía um "nome herdado da história" que nada tinha a ver com a realidade, gerando razões de incerteza, por o seu próprio nome estar dissociado do seu objecto.
Com a Reforma de 2004, o Contencioso Administrativo perdeu a controversa figura do recurso de anulação, para agrado do Professor Vasco Pereira da Silva, sendo substituído pela Acção de Impugnação de Actos Administrativos, que resulta da faculdade de cumulação de pedidos (4º e 47º CPTA), que visa a apreciação global da relação jurídica administrativa devido à impugnação de uma acto administrativo lesivo.
Assim sendo, a acção de impugnação e a cumulação de pedidos referem-se ao facto de integrarem uma acção de simples apreciação para averiguar os direitos dos particulares e uma acção de condenação (no caso de os direitos se verificarem) que confere ao particular a possibilidade de reagir contra a Administração Pública, tendo em vista a tutela dos seus direitos. O recurso de anulação torna-se assim num processo de plena jurisdição com o acompanhamento da flexibilização do conteúdo das sentenças do Contencioso Administrativo à realidade dos factos, com os tais efeitos repristinatórios e conformadores.
Parece-nos adequada a posição do Professor Vasco Pereira da Silva, relativamente a este assunto, já que é necessária uma actualização histórica do Contencioso Administrativo. Só assim podemos ter um Contencioso Administrativo claro, que se adapte à realidade e às necessidades dos particulares.
Podemos concluir que o recurso de anulação é uma verdadeira acção de impugnação
de actos e normas administrativas e que o artigo 230º padece dos vícios do
antigo sistema francês, cuja função é a da defesa da Lei, onde os direitos dos
particulares são protegidos de forma indirecta. Penso que deverá ser revisto de
modo a acabar com a sua natureza restritiva e diminuindo a margem de
discricionariedade que deixa aos tribunais, pois gera situações de violação dos
principios da legalidade, igualdade e segurança jurídica.
Bibliografia: SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as acções no novo Processo Administrativo, 2ª edição, Almedina, 2009
QUADROS, Fausto de/MARTINS, Ana Maria Guerra, Contencioso Comunitário, 2ª edição, Almedina, 2009
Catarina Baltazar Silva
Nº 19544
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