domingo, 11 de novembro de 2012

Uma reflexão sobre a tutela cautelar


No âmbito da jurisdição administrativa, parte significativa dos litígios interpostos nos tribunais corresponde a situações em que os cidadãos exigem uma tutela cautelar, com vista a assegurar uma tutela judicial efectiva[1] dos seus interesses e direitos legalmente protegidos. De facto, a tutela cautelar visa precisamente satisfazer este imperativo constitucional, minimizando o risco de retardamento e de inutilidade da tutela principal. Nesse sentido, o CPTA[2] estipula que os tribunais devem atribuir a estes processos cautelares precedência sobre quaisquer outros. Para além disso, os processos cautelares funcionam como um incidente do processo declarativo (também denominado de processo principal), não possuindo, portanto, autonomia[3].

Num processo cautelar, quando o autor pede ao tribunal administrativo que adopte uma providência o que se pretende é evitar a constituição de uma situação irreversível ou a ocorrência de danos graves durante a pendência do processo declarativo que coloquem em perigo a utilidade da decisão do processo[4]. Não há, portanto, qualquer dúvida acerca da necessidade e importância da tutela cautelar[5]. Contudo, a urgência inerente a esta tutela implica necessariamente uma diminuição das garantias de defesa: um aumento de celeridade envolve não apenas um prazo mais curto para a decisão do juiz, como também uma limitação a nível do contraditório e dos meios de prova.

Não só para que não seja posto em causa o acima mencionado imperativo constitucional de uma tutela judicial efectiva, como também para que se evite uma violação grave das garantias de defesa, é necessário que a regulação destas situações em que surgem processos cautelares seja feita de forma equilibrada e justa. Deste modo, procede-se à analise de duas questões particularmente controversas que necessitam de ser solucionadas de uma forma adequada e transparente, nem sempre facilmente alcançável.

A primeira questão que se destaca diz respeito a um dos regimes especiais de atribuição de providências cautelares, plasmado no artigo 120º nº1 a) CPTA, que determina que quando for evidente a procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal, o tribunal decrete a providência requerida (não sendo neste caso necessário recorrer às alíneas b) e c) do mesmo artigo). Visto que a norma exige uma evidência manifesta da procedência da pretensão, parece que um articulado inicial muito extenso pode ser contraproducente neste caso[6]. O STA[7] entendeu num acórdão[8] que a procedência da pretensão formulada/a formular no processo principal nunca seria evidente devido ao facto de os artigos 45º e 102º nº5 CPTA estipularem que mesmo as acções em que o autor tem razão podem improceder por impossibilidade ou razões de interesse público. No entanto, admitir que a aplicação do artigo 120º nº1 a) CPTA seja afastada com este fundamento consistiria numa denegação da tutela cautelar baseada em juízos hipotéticos sobre eventualidades não comprováveis no momento da decisão[9].

Alguma doutrina entende que não se enquadram no âmbito desta norma as situações em que a procedência da pretensão formulada é evidente, não se encontrando, no entanto, em perigo a utilidade da sentença a proferir no processo principal – apesar desta norma não fazer com que o decretamento da providência requerida dependa de “um fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal”[10], se a utilidade da sentença não se encontrar em perigo e o requerente nada perder em esperar, a providência não deve ser decretada[11]. No entanto, há quem considere que o artigo em análise visa (sendo evidente que o autor tem razão no processo principal) o decretamento da providência cautelar, independentemente do periculum in mora, entendendo que o mesmo consagra uma modalidade de tutela sumária que tem apenas por base o fumus boni iuris e que encontra o seu fundamento na protecção de quem tenha, evidentemente, razão no processo principal[12].

A delimitação do âmbito de aplicação do artigo 120º nº1 a) CPTA é, igualmente, uma questão debatida: por um lado, há quem defenda que o mesmo apenas é aplicável nos casos de impugnação de um acto administrativo, por outro há quem considere que este regime se aplica a qualquer tipo de providência[13].

A segunda questão que se coloca diz respeito à temática dos incidentes do processo cautelar, nomeadamente, ao âmbito de aplicação dos artigos 128º[14] e 131º[15] CPTA. A proibição de execução do acto estipulada no primeiro dos artigos referidos não deve ser confundida com o decretamento provisório da providência previsto no artigo 131º CPTA . Deste modo, o artigo 128º CPTA aplica-se a pedidos de suspensão de eficácia de actos/normas administrativos, dispensando neste âmbito a aplicação do artigo 131º CPTA, visto que os efeitos práticos previstos neste último artigo já se produziram, em virtude da aplicação do primeiro. Consequentemente, o artigo 131º CPTA diz respeito às restantes providências (e não se aplica às situações de suspensão da eficácia)[16]. O artigo 128º CPTA prevê uma proibição que se desencadeia de forma automática com a recepção do duplicado do requerimento, impondo à autoridade administrativa que a mesma não inicie/prossiga a execução do acto na pendência do processo cautelar. Por outro lado, no âmbito do artigo 131º CPTA, o tribunal decreta uma providência provisória que vigora na pendência do processo e que se destina a assegurar a utilidade da decisão a proferir no processo cautelar[17].

Alguma doutrina[18] defendeu a eliminação do artigo 128º CPTA. As principais críticas que lhe foram apontadas dizem respeito: em primeiro lugar, ao facto de poder ser a própria entidade requerida a levantar a proibição de executar, emitindo resolução fundamentada, sem intervenção prévia do juiz cautelar; em segundo lugar, ao prazo de 15 dias que o CPTA exige para a emissão dessa resolução, que só vem piorar a situação, visto que estimula as entidades a emitir resoluções que, de outro modo, poderiam vir a não ser emitidas; em último lugar, à incoerência deste regime, tendo em conta a dificuldade da sua articulação com o artigo 131º CPTA. Seria, portanto, razoável a eliminação do artigo 128º CPTA e a recondução das situações a que o mesmo se refere ao âmbito de aplicação do artigo 131º CPTA, que se ocupa do decretamento provisório das providências cautelares. No entanto, entende-se que os pressupostos de que depende esse decretamento (a que se refere o artigo 131º CPTA) teriam de ser flexibilizados e vistos de forma menos limitativa, sempre que estivesse em causa uma situação de decretamento provisório da suspensão da eficácia de actos administrativos[19].

Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2012.
AMORIM, Tiago, “As providências cautelares do CPTA: um primeiro balanço”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47.
NETO, Dora Lucas, “Meios Cautelares”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº76.

Vera Martins
Nº 19893       



[1] Artigo 268º nº4 CRP.
[2] Artigo 36º CPTA.
[3] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2012, p. 437.
[4] Artigo 112º nº1 CPTA: “Quem possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos pode solicitar a adopção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo.”.
[5] NETO, Dora Lucas, “Meios Cautelares”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº76, p. 63: “Bem sabemos que uma justiça que tarda não é uma verdadeira justiça.”.
[6] NETO, Dora Lucas, “Meios Cautelares”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº76, p. 63; ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2012, p. 481: “A jurisprudência tem-se orientado no sentido de que só existe evidência (...) em situações notórias ou patentes, em que a precedência da acção principal seja perceptível sem necessidade de elaborada indagação, quer de facto, quer de direito.”.
[7] Supremo Tribunal Administrativo.
[8] Acórdão STA de 6/03/2007, Proc. nº 01143/06, apud ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2012, p. 485.
[9] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2012, p. 485.
[10] Artigo 120º nº1 b) CPTA.
[11] AMORIM, Tiago, “As providências cautelares do CPTA: um primeiro balanço”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47, p. 41.
[12] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2012, p. 483: “É neste sentido que se orienta a previsão do artigo 120º, nº1, alínea a), que, a nosso ver, constitui, portanto, um valioso elemento de flexibilização, inspirado na ideia de que os vários requisitos de que depende a atribuição das providências cautelares devem ser entendidos num sistema móvel, em que a maior intensidade no preenchimento de uns possa compensar a menor intensidade no preenchimento de outros (...)”
[13] AMORIM, Tiago, “As providências cautelares do CPTA: um primeiro balanço”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47, p. 42; Dora Neto afirma que para além dos casos exemplificados no artigo 120º nº1 a) CPTA, se enquadram de igual forma no âmbito deste artigo os casos de vícios de violação de lei manifestos e de vícios de forma manifestos - NETO, Dora Lucas, “Meios Cautelares”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº76, p. 64; ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2012, p. 481: “Importa sublinhar, antes de mais, o carácter meramente exemplificativo das situações elencadas, todas exclusivamente referidas a processos impugnatórios de actos administrativos, mas que apenas pretendem ilustrar o que está em causa neste domínio, recorrendo, para isso, ao elenco das situações mais paradigmáticas, deduzidas da experiência do recurso contencioso de anulação.”.
[14] Artigo 128º nº1 CPTA: “Quando seja requerida a suspensão de eficácia de um acto administrativo, a autoridade administrativa, recebido o duplicado do requerimento, não pode iniciar ou prosseguir a execução, salvo se, mediante resolução fundamentada, reconhecer, no prazo de 15 dias, que o diferimento da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público.”.
[15] Artigo 131º nº1 CPTA: “Quando a providência cautelar se destine a tutelar direitos, liberdades e garantias que de outro modo não possam ser exercidos em tempo útil ou quando entenda haver especial urgência, pode o interessado pedir o decretamento provisório da providência.”.
[16] NETO, Dora Lucas, “Meios Cautelares”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº76, p. 65.
[17] AMORIM, Tiago, “As providências cautelares do CPTA: um primeiro balanço”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47, p. 43.
[18] NETO, Dora Lucas, “Meios Cautelares”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº76, p. 65.
[19] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2012, p. 467.

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