No âmbito da jurisdição
administrativa, parte significativa dos litígios interpostos nos tribunais
corresponde a situações em que os cidadãos exigem uma tutela cautelar, com
vista a assegurar uma tutela judicial efectiva[1]
dos seus interesses e direitos legalmente protegidos. De facto, a tutela
cautelar visa precisamente satisfazer este imperativo constitucional,
minimizando o risco de retardamento e de inutilidade da tutela principal. Nesse
sentido, o CPTA[2]
estipula que os tribunais devem atribuir a estes processos cautelares precedência
sobre quaisquer outros. Para além disso, os processos cautelares funcionam como
um incidente do processo declarativo (também denominado de processo principal),
não possuindo, portanto, autonomia[3].
Num processo cautelar, quando
o autor pede ao tribunal administrativo que adopte uma providência o que se
pretende é evitar a constituição de uma situação irreversível ou a ocorrência
de danos graves durante a pendência do processo declarativo que coloquem em
perigo a utilidade da decisão do processo[4].
Não há, portanto, qualquer dúvida acerca da necessidade e importância da tutela
cautelar[5].
Contudo, a urgência inerente a esta tutela implica necessariamente uma
diminuição das garantias de defesa: um aumento de celeridade envolve não apenas
um prazo mais curto para a decisão do juiz, como também uma limitação a nível
do contraditório e dos meios de prova.
Não só para que não seja posto
em causa o acima mencionado imperativo constitucional de uma tutela judicial
efectiva, como também para que se evite uma violação grave das garantias de
defesa, é necessário que a regulação destas situações em que surgem processos
cautelares seja feita de forma equilibrada e justa. Deste modo, procede-se à
analise de duas questões particularmente controversas que necessitam de ser
solucionadas de uma forma adequada e transparente, nem sempre facilmente
alcançável.
A primeira questão que se
destaca diz respeito a um dos regimes especiais de atribuição de providências
cautelares, plasmado no artigo 120º nº1
a) CPTA, que determina que quando for evidente a procedência da pretensão
formulada ou a formular no processo principal, o tribunal decrete a providência
requerida (não sendo neste caso necessário recorrer às alíneas b) e c)
do mesmo artigo). Visto que a norma exige uma evidência manifesta da
procedência da pretensão, parece que um articulado inicial muito extenso pode
ser contraproducente neste caso[6].
O STA[7]
entendeu num acórdão[8]
que a procedência da pretensão formulada/a formular no processo principal nunca
seria evidente devido ao facto de os artigos
45º e 102º nº5 CPTA estipularem
que mesmo as acções em que o autor tem razão podem improceder por
impossibilidade ou razões de interesse público. No entanto, admitir que a
aplicação do artigo 120º nº1 a) CPTA
seja afastada com este fundamento consistiria numa denegação da tutela cautelar
baseada em juízos hipotéticos sobre eventualidades não comprováveis no momento
da decisão[9].
Alguma doutrina entende que não
se enquadram no âmbito desta norma as situações em que a procedência da
pretensão formulada é evidente, não se encontrando, no entanto, em perigo a
utilidade da sentença a proferir no processo principal – apesar desta norma não
fazer com que o decretamento da providência requerida dependa de “um fundado
receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de
prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa
assegurar no processo principal”[10],
se a utilidade da sentença não se encontrar em perigo e o requerente nada perder
em esperar, a providência
não deve ser decretada[11].
No entanto, há quem considere que o artigo em análise visa (sendo evidente que
o autor tem razão no processo principal) o decretamento da providência
cautelar, independentemente do periculum
in mora, entendendo que o mesmo consagra uma modalidade de tutela sumária
que tem apenas por base o fumus boni
iuris e que encontra o seu fundamento na protecção de quem tenha,
evidentemente, razão no processo principal[12].
A delimitação do âmbito de
aplicação do artigo 120º nº1 a) CPTA
é, igualmente, uma questão debatida: por um lado, há quem defenda que o mesmo
apenas é aplicável nos casos de impugnação de um acto administrativo, por outro
há quem considere que este regime se aplica a qualquer tipo de providência[13].
A segunda questão que se coloca diz respeito à
temática dos incidentes do processo cautelar, nomeadamente, ao âmbito de
aplicação dos artigos 128º[14] e
131º[15] CPTA. A proibição de execução do acto
estipulada no primeiro dos artigos referidos não deve ser confundida com o
decretamento provisório da providência previsto no artigo 131º CPTA . Deste modo, o artigo 128º CPTA aplica-se a pedidos de suspensão de eficácia de
actos/normas administrativos, dispensando neste âmbito a aplicação do artigo 131º CPTA, visto que os efeitos
práticos previstos neste último artigo já se produziram, em virtude da
aplicação do primeiro. Consequentemente, o artigo
131º CPTA diz respeito às restantes providências (e não se aplica às
situações de suspensão da eficácia)[16].
O artigo 128º CPTA prevê uma
proibição que se desencadeia de forma automática com a recepção do duplicado do
requerimento, impondo à autoridade administrativa que a mesma não
inicie/prossiga a execução do acto na pendência do processo cautelar. Por outro
lado, no âmbito do artigo 131º CPTA,
o tribunal decreta uma providência provisória que vigora na pendência do
processo e que se destina a assegurar a utilidade da decisão a proferir no
processo cautelar[17].
Alguma doutrina[18]
defendeu a eliminação do artigo 128º CPTA.
As principais críticas que lhe foram apontadas dizem respeito: em primeiro
lugar, ao facto de poder ser a própria entidade requerida a levantar a
proibição de executar, emitindo resolução fundamentada, sem intervenção prévia
do juiz cautelar; em segundo lugar, ao prazo de 15 dias que o CPTA exige para a emissão dessa
resolução, que só vem piorar a situação, visto que estimula as entidades a
emitir resoluções que, de outro modo, poderiam vir a não ser emitidas; em
último lugar, à incoerência deste regime, tendo em conta a dificuldade da sua
articulação com o artigo 131º CPTA.
Seria, portanto, razoável a eliminação do artigo
128º CPTA e a recondução das situações a que o mesmo se refere ao âmbito de
aplicação do artigo 131º CPTA, que se
ocupa do decretamento provisório das providências cautelares. No entanto,
entende-se que os pressupostos de que depende esse decretamento (a que se
refere o artigo 131º CPTA) teriam de
ser flexibilizados e vistos de forma menos limitativa, sempre que estivesse em
causa uma situação de decretamento provisório da suspensão da eficácia de actos
administrativos[19].
Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra,
Almedina, 2012.
AMORIM, Tiago, “As providências cautelares do CPTA: um
primeiro balanço”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47.
NETO, Dora Lucas, “Meios Cautelares”, in Cadernos de Justiça
Administrativa, nº76.
Vera Martins
Nº 19893
[1] Artigo
268º nº4 CRP.
[2] Artigo
36º CPTA.
[3] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo,
Coimbra, Almedina, 2012, p. 437.
[4] Artigo
112º nº1 CPTA: “Quem possua legitimidade para intentar um processo junto
dos tribunais administrativos pode solicitar a adopção da providência ou das
providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem
adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo.”.
[5] NETO, Dora Lucas, “Meios Cautelares”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº76, p.
63: “Bem sabemos que uma justiça que tarda não é uma verdadeira justiça.”.
[6] NETO, Dora Lucas, “Meios Cautelares”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº76, p.
63; ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de
Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2012, p. 481: “A jurisprudência
tem-se orientado no sentido de que só existe evidência (...) em situações
notórias ou patentes, em que a precedência da acção principal seja perceptível
sem necessidade de elaborada indagação, quer de facto, quer de direito.”.
[7] Supremo
Tribunal Administrativo.
[8] Acórdão STA de 6/03/2007, Proc. nº 01143/06,
apud ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de
Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2012, p. 485.
[9] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra,
Almedina, 2012, p. 485.
[10] Artigo
120º nº1 b) CPTA.
[11] AMORIM, Tiago, “As providências cautelares do CPTA: um primeiro balanço”, in
Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47, p. 41.
[12]
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra,
Almedina, 2012, p. 483: “É neste sentido que se orienta a previsão do artigo 120º, nº1, alínea a), que, a
nosso ver, constitui, portanto, um valioso elemento de flexibilização,
inspirado na ideia de que os vários requisitos de que depende a atribuição das
providências cautelares devem ser entendidos num sistema móvel, em que a maior
intensidade no preenchimento de uns possa compensar a menor intensidade no
preenchimento de outros (...)”
[13] AMORIM, Tiago, “As providências cautelares do CPTA: um primeiro balanço”, in
Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47, p. 42; Dora Neto afirma que para
além dos casos exemplificados no artigo
120º nº1 a) CPTA, se enquadram de igual forma no âmbito deste artigo os
casos de vícios de violação de lei manifestos e de vícios de forma manifestos -
NETO, Dora Lucas, “Meios Cautelares”,
in Cadernos de Justiça Administrativa, nº76, p. 64; ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo,
Coimbra, Almedina, 2012, p. 481: “Importa sublinhar, antes de mais, o carácter
meramente exemplificativo das situações elencadas, todas exclusivamente
referidas a processos impugnatórios de actos administrativos, mas que apenas
pretendem ilustrar o que está em causa neste domínio, recorrendo, para isso, ao
elenco das situações mais paradigmáticas, deduzidas da experiência do recurso
contencioso de anulação.”.
[14] Artigo
128º nº1 CPTA: “Quando seja requerida a suspensão de eficácia de um acto
administrativo, a autoridade administrativa, recebido o duplicado do
requerimento, não pode iniciar ou prosseguir a execução, salvo se, mediante
resolução fundamentada, reconhecer, no prazo de 15 dias, que o diferimento da
execução seria gravemente prejudicial para o interesse público.”.
[15] Artigo
131º nº1 CPTA: “Quando a providência cautelar se destine a tutelar
direitos, liberdades e garantias que de outro modo não possam ser exercidos em
tempo útil ou quando entenda haver especial urgência, pode o interessado pedir
o decretamento provisório da providência.”.
[16] NETO, Dora Lucas, “Meios Cautelares”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº76, p.
65.
[17] AMORIM, Tiago, “As providências cautelares do CPTA: um primeiro balanço”, in
Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47, p. 43.
[18] NETO, Dora Lucas, “Meios Cautelares”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº76, p.
65.
[19] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra,
Almedina, 2012, p. 467.
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