Afinal
o que se entende por “direitos, liberdades e garantias” para efeitos de
aplicação do artigo 109º CPTA?
A
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias consiste numa das
espécies de processo principal urgente consagrada no título IV do CPTA, mais
concretamente, encontra-se regulada nos artigos 109º, 110 e 111º. Consistindo
numa intimação, este processo dirige-se à emissão de uma sentença de condenação
que visa a imposição de comportamentos, positivos ou negativos, à Administração
de forma célere, simplificada e mais eficaz. [1]
[2]
Para a sua aplicação exige-se o
preenchimento de um conjunto de condições de admissibilidade tais como o carácter urgente, decorrência
necessária e lógica da natureza deste processo, que deve ser aferido num sentido
subjectivista tendo em conta a situação concreta do requerente. [3]
Exige-se a indispensabilidade, isto
é, a inexistência de qualquer outro meio processual especial de defesa, sendo a
intimação a única possibilidade efectiva e mais eficaz de protecção de
direitos, liberdades e garantias naquele caso concreto, e ainda a subsidiariedade face ao decretamento
provisório de uma providência cautelar.[4]
[5]
Impõe-se que haja uma impossibilidade e insuficiência no decretamento
provisório de uma providência cautelar. A impossibilidade manifesta-se na
necessidade de dar uma resposta irreversível sobre a situação em causa, já a
insuficiência relaciona-se com a exigência de tomada de uma decisão de mérito,
uma decisão definitiva.
Todavia, ponto prévio à verificação
das condições atrás referidas, consiste na identificação do âmbito objectivo da
figura. Focar-nos-emos de agora em diante somente nessa questão.
O artigo 109º/1 CPTA esclarece que,
para que a intimação possa ser utilizada, torna-se necessária a invocação de um
direito, liberdade ou garantia. Mas o que entender por estes? Será que cabe
aqui a mesma noção utilizada no âmbito do Direito Constitucional?[6]
A Constituição da República
Portuguesa (CRP) consagra no capítulo I da Parte I, especificamente nos artigos
24º a 57º, um elenco de direitos, liberdades e garantias, agrupando-os por
capítulos consoante a natureza. Por exemplo, o capítulo I refere-se aos direitos
de conteúdo pessoal, o capítulo II refere-se aos relacionados com a
participação política enquanto o capítulo III se dedica aos direitos,
liberdades e garantias dos trabalhadores.
Sistematicamente inseridos na parte
I, tal significa que correspondem a direitos fundamentais, isto é, aqueles que
“(…)traduzem o estado dos direitos no
contexto do Estado de Direito”[7],
com a particularidade, face aos direitos económicos, sociais e culturais,
também direitos fundamentais, de serem
dotados de aplicabilidade directa (artigo 18º/1 CRP). Porém, JORGE REIS NOVAIS,
defende que o regime para ambos os direitos é único, diferindo apenas a existência
de conteúdo tendencialmente determinado/determinável nos primeiros, não derivando
disso uma hierarquia entre direitos fundamentais. [8]
Decorre
da natureza dos direitos fundamentais uma exigência de existência de mecanismos
de tutela para a eventualidade de estes serem infligidos por actos dos poderes
públicos. De facto eles existem. Com a revisão constitucional de 1997, fora
aditado o nº5 ao artigo 20º que precisamente vem consagrar uma via processual
específica para defesa de direitos fundamentais, embora restringindo aos de
carácter pessoal. É nesta lógica que surge, no âmbito do contencioso
administrativo, a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.
A primeira questão que se levanta desde logo é a de saber se os
direitos, liberdades e garantias a que se refere o artigo 109º são somente os
pessoais ou se todos os outros. Na verdade, o CPTA não distingue o que leva a
considerar que se verifica um alargamento do âmbito de protecção. Efectivamente,
o legislador não se acomodou com a mera concretização do imperativo
constitucional constante do artigo 20º/5, enveredando por uma extensão ao âmbito
de intervenção. Segunda questão com
a qual nos deparamos consiste em saber se estarão também abrangidos os direitos
fundamentais de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias. [9]A
doutrina maioritária aceita pacificamente que se faça uma abertura, visto ser este
o entendimento mais conforme à natureza da intimação. Aliás, tal já decorreria
da inexistência de restrição aos direitos pessoais, acrescentado ao facto de
ter como finalidade a tutela célere e eficaz de certos direitos que dela
necessitam e que reflectem uma ligação especial com a dignidade da pessoa
humana, princípio vector consagrado constitucionalmente (artigo 1º).Um terceiro problema, consiste em saber
quais são esses direitos análogos. CARLA AMADO GOMES parece relutante em
aceitar que se possa inserir direitos que não estejam constitucionalmente
previstos, não admitindo, assim, aqueles que se encontrem na lei ou no Direito
Internacional, pois tal levaria à redução de operacionalidade do meio através
da cumulação excessiva de processos nos tribunais. Reconhece, que também não haveria
necessidade de se ponderar outros direitos, pois a constituição abrange o leque
de direitos fundamentais susceptíveis do devido reconhecimento.[10]
VIERA
DE ANDRADE[11]
limita a utilização da intimação às situações em que esteja em causa directa e
indirectamente o exercício do próprio direito, não procedendo à extensão quanto
a interesses ou direitos, substanciais ou procedimentais que tenham ligação
instrumental com a realização de direitos constitucionais ou que sejam
concretizações legislativas de direitos fundamentais de conteúdo indeterminável
no plano constitucional.
É
outra a visão de JORGE REIS NOVAIS. Defende que, no âmbito da justiça
administrativa, a distinção se faz tendo em conta o critério da fundamentalidade
do próprio direito. Esclarecendo, haverá lugar a intimação para protecção de
direitos, liberdades e garantias desde que se esteja diante de um direito
fundamental em sentido material, um direito com relevância material e que, para
além disso, tenha um conteúdo normativo determinado ou pela constituição ou
pela lei.
Lina Martins
19703
[1]
É o que resulta da leitura do artigo 109/1 CPTA “ a intimação para direitos, liberdades e garantias pode ser requerida
quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a
adopção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para
assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito liberdade e garantia (…)
[2]
Não obstante o nº2 do artigo referido supra
também admitir que a intimação possa ser dirigida contra particulares, maxime, concessionários.
[3]
A título de exemplo veja-se o Acórdão do tribunal Central Administrativo do Sul
de 26 de Janeiro de 2006, Processo nº 01157/05 que não considera urgente a
circunstância de ter sido violado o direito à saúde há mais de dois anos.
[4]
“(…) por não ser possível ou suficiente,
nas circunstancias do caso, o decretamento provisório de uma providencia
cautelar, segundo o disposto no artigo 131º”. Artigo 109/1 CPTA.
[5] Subsidiariedade,
leia-se, em sentido estrito. A subsidiariedade em sentido ampla relaciona-se
com o conceito de indispensabilidade.
[6]
Enquadra-se aqui, perfeitamente, a frase
de VASCO PEREIRA DA SILVA “uma das
questões mais necessitadas de psicanálise (cultural) é a da relação difícil entre
Administração e Constituição, entre Direito Administrativo e Direito
constitucional”. O contencioso administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª
edição, pág.169.
[7]
GOMES, CARLA AMADO, pretexto, contexto e texto da intimação para protecção de
direitos, liberdades e garantias, in
Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Inocêncio Galvão Telles, Volume V pág. 542.
[8]“
Direito, liberdade ou garantia: uma noção imprestável na justiça
administrativa?”, in Cadernos de Justiça nº73 pág 50 e ss.
[9]
Note-se que ao nível constitucional dispõe o artigo 17º “o regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados
no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga.
[10] Vide págs.
556 e 557 da obra já referenciada.
[11] In A Justiça Administrativa, 11º edição, 2011, págs.
238 e 239.
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