quinta-feira, 13 de dezembro de 2012


Afinal o que se entende por “direitos, liberdades e garantias” para efeitos de aplicação do artigo 109º CPTA?

A intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias consiste numa das espécies de processo principal urgente consagrada no título IV do CPTA, mais concretamente, encontra-se regulada nos artigos 109º, 110 e 111º. Consistindo numa intimação, este processo dirige-se à emissão de uma sentença de condenação que visa a imposição de comportamentos, positivos ou negativos, à Administração de forma célere, simplificada e mais eficaz. [1] [2]
            Para a sua aplicação exige-se o preenchimento de um conjunto de condições de admissibilidade tais como o carácter urgente, decorrência necessária e lógica da natureza deste processo, que deve ser aferido num sentido subjectivista tendo em conta a situação concreta do requerente. [3] Exige-se a indispensabilidade, isto é, a inexistência de qualquer outro meio processual especial de defesa, sendo a intimação a única possibilidade efectiva e mais eficaz de protecção de direitos, liberdades e garantias naquele caso concreto, e ainda a subsidiariedade face ao decretamento provisório de uma providência cautelar.[4] [5] Impõe-se que haja uma impossibilidade e insuficiência no decretamento provisório de uma providência cautelar. A impossibilidade manifesta-se na necessidade de dar uma resposta irreversível sobre a situação em causa, já a insuficiência relaciona-se com a exigência de tomada de uma decisão de mérito, uma decisão definitiva.
            Todavia, ponto prévio à verificação das condições atrás referidas, consiste na identificação do âmbito objectivo da figura. Focar-nos-emos de agora em diante somente nessa questão.
            O artigo 109º/1 CPTA esclarece que, para que a intimação possa ser utilizada, torna-se necessária a invocação de um direito, liberdade ou garantia. Mas o que entender por estes? Será que cabe aqui a mesma noção utilizada no âmbito do Direito Constitucional?[6]
            A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra no capítulo I da Parte I, especificamente nos artigos 24º a 57º, um elenco de direitos, liberdades e garantias, agrupando-os por capítulos consoante a natureza. Por exemplo, o capítulo I refere-se aos direitos de conteúdo pessoal, o capítulo II refere-se aos relacionados com a participação política enquanto o capítulo III se dedica aos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores.
            Sistematicamente inseridos na parte I, tal significa que correspondem a direitos fundamentais, isto é, aqueles que “(…)traduzem o estado dos direitos no contexto do Estado de Direito[7], com a particularidade, face aos direitos económicos, sociais e culturais, também direitos  fundamentais, de serem dotados de aplicabilidade directa (artigo 18º/1 CRP). Porém, JORGE REIS NOVAIS, defende que o regime para ambos os direitos é único, diferindo apenas a existência de conteúdo tendencialmente determinado/determinável nos primeiros, não derivando disso uma hierarquia entre direitos fundamentais. [8]
Decorre da natureza dos direitos fundamentais uma exigência de existência de mecanismos de tutela para a eventualidade de estes serem infligidos por actos dos poderes públicos. De facto eles existem. Com a revisão constitucional de 1997, fora aditado o nº5 ao artigo 20º que precisamente vem consagrar uma via processual específica para defesa de direitos fundamentais, embora restringindo aos de carácter pessoal. É nesta lógica que surge, no âmbito do contencioso administrativo, a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.
            A primeira questão que se levanta desde logo é a de saber se os direitos, liberdades e garantias a que se refere o artigo 109º são somente os pessoais ou se todos os outros. Na verdade, o CPTA não distingue o que leva a considerar que se verifica um alargamento do âmbito de protecção. Efectivamente, o legislador não se acomodou com a mera concretização do imperativo constitucional constante do artigo 20º/5, enveredando por uma extensão ao âmbito de intervenção. Segunda questão com a qual nos deparamos consiste em saber se estarão também abrangidos os direitos fundamentais de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias. [9]A doutrina maioritária aceita pacificamente que se faça uma abertura, visto ser este o entendimento mais conforme à natureza da intimação. Aliás, tal já decorreria da inexistência de restrição aos direitos pessoais, acrescentado ao facto de ter como finalidade a tutela célere e eficaz de certos direitos que dela necessitam e que reflectem uma ligação especial com a dignidade da pessoa humana, princípio vector consagrado constitucionalmente (artigo 1º).Um terceiro problema, consiste em saber quais são esses direitos análogos. CARLA AMADO GOMES parece relutante em aceitar que se possa inserir direitos que não estejam constitucionalmente previstos, não admitindo, assim, aqueles que se encontrem na lei ou no Direito Internacional, pois tal levaria à redução de operacionalidade do meio através da cumulação excessiva de processos nos tribunais. Reconhece, que também não haveria necessidade de se ponderar outros direitos, pois a constituição abrange o leque de direitos fundamentais susceptíveis do devido reconhecimento.[10]
VIERA DE ANDRADE[11] limita a utilização da intimação às situações em que esteja em causa directa e indirectamente o exercício do próprio direito, não procedendo à extensão quanto a interesses ou direitos, substanciais ou procedimentais que tenham ligação instrumental com a realização de direitos constitucionais ou que sejam concretizações legislativas de direitos fundamentais de conteúdo indeterminável no plano constitucional.
É outra a visão de JORGE REIS NOVAIS. Defende que, no âmbito da justiça administrativa, a distinção se faz tendo em conta o critério da fundamentalidade do próprio direito. Esclarecendo, haverá lugar a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias desde que se esteja diante de um direito fundamental em sentido material, um direito com relevância material e que, para além disso, tenha um conteúdo normativo determinado ou pela constituição ou pela lei.



 Lina Martins
19703

           




[1] É o que resulta da leitura do artigo 109/1 CPTA “ a intimação para direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adopção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito liberdade e garantia (…)
[2] Não obstante o nº2 do artigo referido supra também admitir que a intimação possa ser dirigida contra particulares, maxime, concessionários.
[3] A título de exemplo veja-se o Acórdão do tribunal Central Administrativo do Sul de 26 de Janeiro de 2006, Processo nº 01157/05 que não considera urgente a circunstância de ter sido violado o direito à saúde há mais de dois anos.
[4] “(…) por não ser possível ou suficiente, nas circunstancias do caso, o decretamento provisório de uma providencia cautelar, segundo o disposto no artigo 131º”. Artigo 109/1 CPTA.
[5] Subsidiariedade, leia-se, em sentido estrito. A subsidiariedade em sentido ampla relaciona-se com o conceito de indispensabilidade.
[6]  Enquadra-se aqui, perfeitamente, a frase de VASCO PEREIRA DA SILVA “uma das questões mais necessitadas de psicanálise (cultural) é a da relação difícil entre Administração e Constituição, entre Direito Administrativo e Direito constitucional”. O contencioso administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, pág.169.  
[7] GOMES, CARLA AMADO, pretexto, contexto e texto da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, in Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Inocêncio Galvão Telles, Volume V pág. 542.
[8]“ Direito, liberdade ou garantia: uma noção imprestável na justiça administrativa?”, in Cadernos de Justiça nº73 pág 50 e ss.
[9] Note-se que ao nível constitucional dispõe o artigo 17º “o regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga.
[10] Vide págs. 556 e 557 da obra já referenciada.
[11] In  A Justiça Administrativa, 11º edição, 2011, págs. 238 e 239.

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