Para
enquadramento prático da matéria em questão, imaginemos o seguinte caso:
A sociedade anónima Vidros-Limpos pretende
apresentar uma proposta ao concurso público de prestação de serviços na área de
limpeza, publicado no DR. Verifica que as especificações contidas nos
documentos do concurso enfermam de ilegalidades, e entretanto foi adjudicado o
concurso à Gertrudes Servilimpa, Lda.
Um
processo cautelar neste caso destinar-se-ia a obter a suspensão de eficácia do
acto de adjudicação do contrato de prestação de serviços da Gertrudes
Servilimpa, Lda. e eventualmente a correcção da ilegalidade das especificações
constantes dos documentos dos concursos. Haveria que recorrer, assim, ao art.
132º CPTA.
O art. 132º
consagra um regime específico para as providências cautelares relativas a
procedimentos de formação de contratos. Resulta da incorporação do regime
previsto no então art. 5º do Decreto-Lei 134-98, de 13 de Maio, depois de se
ter cumprido a transposição para a nossa ordem jurídica das Directivas n.º
89/665/CEE, de 21/12, e 92/13/CEE, de 25/02.
O seu n.º1
prevê a possibilidade de se lançar mão de providências cautelares destinadas a
corrigir a ilegalidade ou a impedir que sejam causados outros danos aos
interesses em presença, incluindo a suspensão do procedimento de formação do
respectivo contrato. Pode-se assim dizer que, enquanto os artigos 100º a 102º
correspondem ao recurso contencioso de anulação, este artigo 132º corresponde
às medidas provisórias de que o interessado poderia usar para acautelar o seu
eventual direito, assegurando a utilidade dos processos de impugnação de actos
administrativos praticados no âmbito de procedimentos relativos à formação de
contratos. Assim, se estivermos perante um procedimento pré-contratual inserido nas situações previstas no art. 100º, n.º 1 do CPTA os autores terão de instaurar o processo urgente sumário previsto nos arts. 100º a 103º do mesmo código ao qual poderão adicionar a providência cautelar prevista no art. 132º do referido código, sendo que o ónus de atrasar a resolução do processo, que é sumário, com a introdução de um procedimento cautelar é do requerente que, em concreto, pode considerar esse inevitável prolongamento mais favorável à sua defesa dos seus interesses. Até pode acontecer que o processo se sumarize à margem do regime dos citados arts. 100º a 102º caso a providência cautelar preceda a instauração do processo de impugnação urgente por aplicação do disposto no n.º 7 do referido art. 132º. Se, por sua vez, o procedimento pré-contratual não se insira na previsão do n.º 1 do art. 100º do CPTA então os autores terão de instaurar a acção administrativa especial à qual adicionarão a providência cautelar prevista no art. 132º do CPTA, podendo também aqui ocorrer a convolação do processo de cautelar em definitivo nos termos do n.º 7.
Para além do
mais, o seu âmbito de aplicação vai muito para além do disposto no art. 100º/1:
acautela todos os actos relativos a procedimentos com vista à formação de
contratos da administração, independentemente do seu tipo.[1]
O requerimento
deverá ser instruído com todos os meios de prova (disposto no n.º4; difere,
nomeadamente do regime geral do 118º/2 CPTA), sendo que o prazo de resposta da
autoridade recorrida e dos contra-interessados é de sete dias (n.º5, em
oposição ao art. 117º/1 CPTA). Tem legitimidade qualquer empresa do sector que
apresente os requisitos profissionais necessários à participação no
procedimento, independentemente da sua participação efectiva[2].
Os critérios
de que dependem a concessão da providência estão previstos no n.º 6: sem
prejuízo do disposto no art.° 120.° n.° 1, alínea a), a concessão da
providência cautelar depende do “juízo de
probabilidade do tribunal, ponderados os interesses susceptíveis de serem
lesados, os danos que resultariam da adopção da providência são superiores aos
prejuízos que podem resultar da sua não adopção”. Estamos, de acordo com
Paulo Linhares Dias[3], perante
uma “aparente derrogação” dos critérios previstos no art. 120º/1, à excepção da
alínea a). Como concretizar este critério?
Ao referir que
“sem prejuízo do disposto no 120º/1 a)”, quis o legislador que os requisitos
exigidos para o deferimento das providências em ambas as normas não fossem
cumulativos, ou seja, só haverá que proceder à análise dos requisitos
estabelecidos pelo 132º/6 quando não se conseguir concluir pela procedência da
providência ao abrigo do art. 120º/ 1 a).
Mais difícil é
encontrar lugar na redacção do artigo, que diga respeito ao “periculum in mora”. Há autores[4]
que defendem que a ratio da directiva
supra mencionada não é tanto a tutela dos direitos e interesses dos
particulares, mas sim a garantia da efectividade do Direito da União Europeia e
a tutela da livre concorrência, pelo que o Direito nacional não poderia nunca
subordinar o exercício do poder cautelar ao requisito da existência de dano
grave e irreparável. Porém, a verificação deste requisito é um princípio geral
da tutela cautelar acolhido não só no modelo comunitário, mas em todos os
ordenamentos dos Estados-Membros. Partilho assim da posição de Ana Gouveia
Martins[5]
quando conclui que o periculum in mora
vem mencionado no art. 132º de forma genérica na expressão “ponderados os
interesses susceptíveis de serem lesados” e no juízo de proporcionalidade entre
os danos provenientes da adopção da providência e os prejuízos resultantes da
sua não adopção. Há assim uma presunção da verificação da situação de urgência
pela iminência do contrato, mas não nos mesmos termos restritos configurados
nos arts. 120º/1 b) e c).[6]
Quanto à
exigência do fumus boni iuris, parece-me
ilógico que tal requisito fosse desconsiderado, especialmente, tendo em atenção
a referência expressa ao art. 120º/1 a), determinando-se que sempre que seja
evidente a procedência da pretensão principal, a providência deverá ser
concedida. Para tal, terá sempre que ser apreciada, mesmo que de forma sumária,
a ilegalidade invocada.
O
seu n.º7 apresenta inovações no âmbito de providências cautelares: permite-se
ao juiz uma antecipação de pronúncia quanto ao mérito da causa, desde que se
considere ”demonstrada a ilegalidade de
especificações contidas nos documentos do concurso que era invocada como
fundamento do processo principal”, podendo corrigir a referida ilegalidade,
convolando-se em processo principal. Tal admissibilidade é fonte de perplexidades
entre alguma doutrina[7],
por se abdicar assim de um limite da tutela cautelar: a provisoriedade, havendo
o risco de a tutela cautelar se transformar numa
forma de tutela sumária[8].
Porém, sendo claro que estamos perante um afloramento do princípio da economia
processual, partilho da opinião de Doras Lucas Neto no sentido de que, “tratando-se
de concursos públicos, cuja matéria de facto subjacente aos autos se desenrola num espaço de
tempo curto, face à duração provável da acção principal, será do interesse de
todas as partes que a situação esteja definitiva antes de o procedimento em causa
terminar”.[9]
Em suma, a amplitude deste artigo justifica-se pelo princípio
da garantia judicial efectiva, sendo tão importante a cada direito ou interesse
legítimo fazer corresponder um meio processual definitivo como o é fazer
corresponder um meio cautelar[10].
[1]
Cfr. Oliveira, Mário Esteves e Rodrigo Esteves— Código de Procedimento nos
Tribunais Administrativos, anotado, volume I, Almedina, Coimbra, 2005.
[2] Encontra-se
aqui em causa uma interpretação ampla do interesse directo, pessoal e legítimo
conforme ao Direito da União Europeia.
[3]
Cfr. Dias, Paulo Linhares, O contencioso pré-contratual no código de processo
nos tribunais administrativos, In: Revista da Ordem dos Advogados. - Lisboa. -
A.67. nº2 (Set. 2007), p.755-801
[4]
Cfr. Morbidelli, Giuseppe, La tutela
giurisdizionale dei diritti nell'ordinamento comunitário, Milão, Giuffrè, 2001.
[5]
Cunha, Ana Gouveia e Freitas Martins, A tutela cautelar no contencioso
administrativa: em especial, nos procedimentos de formação dos contratos, Lisboa,
2002, citando Olga Papadoulos: “a urgência, por definição, está preenchida.
Trata-se de corrigir imediatamente as violações ou impedir a produção de danos
suplementares: a iminência de celebração do contrato, atesta, com toda a
evidência, a urgência”.
[6] Descreve Vieira de Andrade esta como uma situação de “periculum in
mora in re ipsa, em que o perigo reside na própria situação litigiosa”, in “A Justiça
Administrativa (Lições)”, 8.ª Edição, Almedina, 2006, pág. 373.
[7]
Cfr. Paulo Linhares Dias, op. cit., “o que se ganha em tempo, e que não será
necessariamente muito, perde-se em garantias próprias do contencioso pré-contratual”.
[9]
Cfr. Dora Lucas Neto, “Notas sobre a
antecipação do juízo sobre a causa principal” in Revista de Direito Público e
Regulação, n.º
1
BIBLIOGRAFIA:
ANDRADE, José Carlos Vieira, “Justiça Administrativa” Edições Almedina, 2011
ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Edições Almedina, 2010
CUNHA, Ana Gouveia e Freitas Martins, A tutela cautelar no contencioso
administrativa: em especial, nos procedimentos de formação dos contratos, Lisboa,
2002
DIAS, Paulo Linhares, O contencioso pré-contratual no código de processo
nos tribunais administrativos, In: Revista da Ordem dos Advogados. - Lisboa. -
A.67. nº2 (Set. 2007), p.755-801
OLIVEIRA, Mário Esteves e Rodrigo Esteves— Código de Procedimento nos
Tribunais Administrativos, anotado, volume I, Almedina, Coimbra, 2005.
QUADROS, Fausto de, Algumas considerações gerais
sobre a reforma do contencioso administrativo em especial, as providências
cautelares, Reforma do contencioso administrativo, Coimbra, 2003
Liliana Piedade
n.º 19702
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