terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Algumas especificidades sobre a amplitude do art. 132º CPTA


Para enquadramento prático da matéria em questão, imaginemos o seguinte caso:


A sociedade anónima Vidros-Limpos pretende apresentar uma proposta ao concurso público de prestação de serviços na área de limpeza, publicado no DR. Verifica que as especificações contidas nos documentos do concurso enfermam de ilegalidades, e entretanto foi adjudicado o concurso à Gertrudes Servilimpa, Lda.


                Um processo cautelar neste caso destinar-se-ia a obter a suspensão de eficácia do acto de adjudicação do contrato de prestação de serviços da Gertrudes Servilimpa, Lda. e eventualmente a correcção da ilegalidade das especificações constantes dos documentos dos concursos. Haveria que recorrer, assim, ao art. 132º CPTA.


O art. 132º consagra um regime específico para as providências cautelares relativas a procedimentos de formação de contratos. Resulta da incorporação do regime previsto no então art. 5º do Decreto-Lei 134-98, de 13 de Maio, depois de se ter cumprido a transposição para a nossa ordem jurídica das Directivas n.º 89/665/CEE, de 21/12, e 92/13/CEE, de 25/02.


O seu n.º1 prevê a possibilidade de se lançar mão de providências cautelares destinadas a corrigir a ilegalidade ou a impedir que sejam causados outros danos aos interesses em presença, incluindo a suspensão do procedimento de formação do respectivo contrato. Pode-se assim dizer que, enquanto os artigos 100º a 102º correspondem ao recurso contencioso de anulação, este artigo 132º corresponde às medidas provisórias de que o interessado poderia usar para acautelar o seu eventual direito, assegurando a utilidade dos processos de impugnação de actos administrativos praticados no âmbito de procedimentos relativos à formação de contratos. Assim, se estivermos perante um procedimento pré-contratual inserido nas situações previstas no art. 100º, n.º 1 do CPTA os autores terão de instaurar o processo urgente sumário previsto nos arts. 100º a 103º do mesmo código ao qual poderão adicionar a providência cautelar prevista no art. 132º do referido código, sendo que o ónus de atrasar a resolução do processo, que é sumário, com a introdução de um procedimento cautelar é do requerente que, em concreto, pode considerar esse inevitável prolongamento mais favorável à sua defesa dos seus interesses. Até pode acontecer que o processo se sumarize à margem do regime dos citados arts. 100º a 102º caso a providência cautelar preceda a instauração do processo de impugnação urgente por aplicação do disposto no n.º 7 do referido art. 132º. Se, por sua vez, o procedimento pré-contratual não se insira na previsão do n.º 1 do art. 100º do CPTA então os autores terão de instaurar a acção administrativa especial à qual adicionarão a providência cautelar prevista no art. 132º do CPTA, podendo também aqui ocorrer a convolação do processo de cautelar em definitivo nos termos do n.º 7. 


Para além do mais, o seu âmbito de aplicação vai muito para além do disposto no art. 100º/1: acautela todos os actos relativos a procedimentos com vista à formação de contratos da administração, independentemente do seu tipo.[1]


O requerimento deverá ser instruído com todos os meios de prova (disposto no n.º4; difere, nomeadamente do regime geral do 118º/2 CPTA), sendo que o prazo de resposta da autoridade recorrida e dos contra-interessados é de sete dias (n.º5, em oposição ao art. 117º/1 CPTA). Tem legitimidade qualquer empresa do sector que apresente os requisitos profissionais necessários à participação no procedimento, independentemente da sua participação efectiva[2].


Os critérios de que dependem a concessão da providência estão previstos no n.º 6: sem prejuízo do disposto no art.° 120.° n.° 1, alínea a), a concessão da providência cautelar depende do “juízo de probabilidade do tribunal, ponderados os interesses susceptíveis de serem lesados, os danos que resultariam da adopção da providência são superiores aos prejuízos que podem resultar da sua não adopção”. Estamos, de acordo com Paulo Linhares Dias[3], perante uma “aparente derrogação” dos critérios previstos no art. 120º/1, à excepção da alínea a). Como concretizar este critério?


Ao referir que “sem prejuízo do disposto no 120º/1 a)”, quis o legislador que os requisitos exigidos para o deferimento das providências em ambas as normas não fossem cumulativos, ou seja, só haverá que proceder à análise dos requisitos estabelecidos pelo 132º/6 quando não se conseguir concluir pela procedência da providência ao abrigo do art. 120º/ 1 a).


Mais difícil é encontrar lugar na redacção do artigo, que diga respeito ao “periculum in mora”. Há autores[4] que defendem que a ratio da directiva supra mencionada não é tanto a tutela dos direitos e interesses dos particulares, mas sim a garantia da efectividade do Direito da União Europeia e a tutela da livre concorrência, pelo que o Direito nacional não poderia nunca subordinar o exercício do poder cautelar ao requisito da existência de dano grave e irreparável. Porém, a verificação deste requisito é um princípio geral da tutela cautelar acolhido não só no modelo comunitário, mas em todos os ordenamentos dos Estados-Membros. Partilho assim da posição de Ana Gouveia Martins[5] quando conclui que o periculum in mora vem mencionado no art. 132º de forma genérica na expressão “ponderados os interesses susceptíveis de serem lesados” e no juízo de proporcionalidade entre os danos provenientes da adopção da providência e os prejuízos resultantes da sua não adopção. Há assim uma presunção da verificação da situação de urgência pela iminência do contrato, mas não nos mesmos termos restritos configurados nos arts. 120º/1 b) e c).[6]


Quanto à exigência do fumus boni iuris, parece-me ilógico que tal requisito fosse desconsiderado, especialmente, tendo em atenção a referência expressa ao art. 120º/1 a), determinando-se que sempre que seja evidente a procedência da pretensão principal, a providência deverá ser concedida. Para tal, terá sempre que ser apreciada, mesmo que de forma sumária, a ilegalidade invocada.

O seu n.º7 apresenta inovações no âmbito de providências cautelares: permite-se ao juiz uma antecipação de pronúncia quanto ao mérito da causa, desde que se considere ”demonstrada a ilegalidade de especificações contidas nos documentos do concurso que era invocada como fundamento do processo principal”, podendo corrigir a referida ilegalidade, convolando-se em processo principal. Tal admissibilidade é fonte de perplexidades entre alguma doutrina[7], por se abdicar assim de um limite da tutela cautelar: a provisoriedade, havendo o risco de a tutela cautelar se transformar numa forma de tutela sumária[8]. Porém, sendo claro que estamos perante um afloramento do princípio da economia processual, partilho da opinião de Doras Lucas Neto no sentido de que, “tratando-se de concursos públicos, cuja matéria de facto subjacente aos autos se desenrola num espaço de tempo curto, face à duração provável da acção principal, será do interesse de todas as partes que a situação esteja definitiva antes de o procedimento em causa terminar”.[9]
Em suma, a amplitude deste artigo justifica-se pelo princípio da garantia judicial efectiva, sendo tão importante a cada direito ou interesse legítimo fazer corresponder um meio processual definitivo como o é fazer corresponder um meio cautelar[10].





 





[1] Cfr. Oliveira, Mário Esteves e Rodrigo Esteves— Código de Procedimento nos Tribunais Administrativos, anotado, volume I, Almedina, Coimbra, 2005.


[2] Encontra-se aqui em causa uma interpretação ampla do interesse directo, pessoal e legítimo conforme ao Direito da União Europeia.


[3] Cfr. Dias, Paulo Linhares, O contencioso pré-contratual no código de processo nos tribunais administrativos, In: Revista da Ordem dos Advogados. - Lisboa. - A.67. nº2 (Set. 2007), p.755-801


[4] Cfr. Morbidelli, Giuseppe,  La tutela giurisdizionale dei diritti nell'ordinamento comunitário, Milão, Giuffrè, 2001.


[5] Cunha, Ana Gouveia e Freitas Martins, A tutela cautelar no contencioso administrativa: em especial, nos procedimentos de formação dos contratos, Lisboa, 2002, citando Olga Papadoulos: “a urgência, por definição, está preenchida. Trata-se de corrigir imediatamente as violações ou impedir a produção de danos suplementares: a iminência de celebração do contrato, atesta, com toda a evidência, a urgência”.


[6] Descreve Vieira de Andrade esta como uma situação de “periculum in mora in re ipsa, em que o perigo reside na própria situação litigiosa”, in “A Justiça Administrativa (Lições)”, 8.ª Edição, Almedina, 2006, pág. 373.


[7] Cfr. Paulo Linhares Dias, op. cit., “o que se ganha em tempo, e que não será necessariamente muito, perde-se em garantias próprias do contencioso pré-contratual”.


[8] Cfr. Cunha, Ana Gouveia e Freitas Martins, op. cit, pg. 305


[9] Cfr. Dora Lucas Neto, “Notas sobre a antecipação do juízo sobre a causa principal” in Revista de Direito Público e Regulação, n.º 1
[10] Cfr. Quadros, Fausto de, Algumas considerações gerais sobre a reforma do contencioso administrativo em especial, as providências cautelares, Reforma do contencioso administrativo, Coimbra, 2003, p. 211-229



BIBLIOGRAFIA:
ANDRADE, José Carlos Vieira, “Justiça Administrativa” Edições Almedina, 2011
ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Edições Almedina, 2010 
CUNHA, Ana Gouveia e Freitas Martins, A tutela cautelar no contencioso administrativa: em especial, nos procedimentos de formação dos contratos, Lisboa, 2002
DIAS, Paulo Linhares, O contencioso pré-contratual no código de processo nos tribunais administrativos, In: Revista da Ordem dos Advogados. - Lisboa. - A.67. nº2 (Set. 2007), p.755-801
OLIVEIRA, Mário Esteves e Rodrigo Esteves— Código de Procedimento nos Tribunais Administrativos, anotado, volume I, Almedina, Coimbra, 2005.
QUADROS, Fausto de, Algumas considerações gerais sobre a reforma do contencioso administrativo em especial, as providências cautelares, Reforma do contencioso administrativo, Coimbra, 2003


Liliana Piedade
n.º 19702

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