quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A extensão de efeitos da sentença e a questão da insconstitucionalidade


O artigo 161º do CPTA. A extensão de efeitos da sentença e a questão da sua inconstitucionalidade
O artigo 161º do CPTA, para além dos artigos 48º e 187º do CPTA, é um dos mecanismos que integra o princípio da agilização processual introduzido com a reforma do contencioso administrativo.
O instituto da extensão de efeitos da sentença foi inspirado no artigo 110º da Lei espanhola de 1998, tendo surgido para dar resposta ao fenómeno que, sobretudo no domínio tributário e do funcionalismo público, tem lugar quando a aplicação de uma mesma norma a uma multiplicidade de destinatários os leva a desencadear, contra a mesma entidade pública, um elevado número de processos sobre a mesma questão material. A introdução deste mecanismo teve como principal objectivo aliviar os tribunais administrativos da apreciação de processos em massa.
O artigo 161º faculta a quem não tenha lançado mão, no momento próprio, do meio processual adequado a satisfazer os seus interesses, a possibilidade de exigir que a entidade pública em causa se comporte para consigo como se tivesse sido ele a obter sentenças transitadas em julgado, que, na realidade, foram proferidas contra essa mesma entidade no âmbito de processos intentados por terceiros.
Para que sejam estendidos os efeitos da sentença a outros casos semelhantes, é necessário que se verifiquem vários pressupostos. Em primeiro lugar, a sentença ou acórdão cuja extensão de efeitos se pretende, tem de ter julgado procedente uma pretensão perfeitamente idêntica àquela que o interessado teria, se, ele próprio tivesse lançado mão da via judicial contra a mesma entidade administrativa. Em segundo lugar, têm de ter sido proferidas cinco sentenças transitadas em julgado que disponham no mesmo sentido, ou, estando-se no âmbito do artigo 48º (processos em massa), tenham sido decididos em três casos os processos selecionados. È, obviamente, ao interessado que cumpre demonstrar o preenchimento destes requisitos.
Há, contudo, uma ressalva a ser feita neste campo, uma vez que no caso de haver contra interessados que não tenham tomado parte no processo em que a sentença foi proferida, a extensão dos efeitos da sentença só pode ser requerida se o interessado tiver, ele próprio, recorrido à via judicial tempestivamente, não obstante esse processo se encontrar pendente (161º, nº5).
A questão é em primeira linha colocada perante a própria entidade administrativa, podendo logo ser resolvida extrajudicialmente, pelo que em princípio, é só na hipótese de a Administração não dar acolhimento à pretensão do interessado que este pode fazer valer perante o tribunal o mecanismo do artigo 161º (161º,nº3). Contudo, o artigo 48º, nº5, al.b) introduz uma excepção neste âmbito, permitindo que nos casos do nº 1 desse artigo, o interessado possa apresentar directamente ao tribunal o pedido de extensão relativo à sentença proferida no processo selecionado.
A pronúncia judicial da extensão de efeitos é proferida no âmbito de um processo declarativo, ainda que sumário, no qual o tribunal verifica e eventualmente reconhece a pretensão do interessado. Por esta razão, nos termos do nº 4 do referido artigo, o processo segue os trâmites do processo de execução de sentenças de anulação de actos administrativos.
O artigo 161º, nº6, possibilita, por sua vez, que se estenda o regime dos números 3 e 4 do mesmo artigo a situações em que o interessado tendo impugnado um acto administrativo, se tenha visto confrontado, na pendência desse processo, com o facto de o acto ter sido anulado por sentença proferido noutro processo que corria contra o mesmo acto. Numa situação desta natureza, como o processo se dirigia à estrita anulação do acto impugnado, ele extingue-se por impossibilidade superveniente da lide.
Colaço Antunes entende que este artigo refere-se apenas a actos com destinatário plural ou indeterminado, uma vez que de outra forma estar-se-ia a alargar os referidos efeitos não só subjectivamente mas também objectivamente, o que permitiria a anulação de outros actos que não o que constitui objecto da acção impugnatória. No entanto, não é esta a posição defendida pela maioria da doutrina que defende que o preceito não visa aplicar-se às situações de acto administrativo com destinatário plural ou indeterminado, mas a quaisquer actos administrativos que tenham colocado o interessado em situação jurídica idêntica à dos destinatários de outros actos que já foram contenciosamente anulados.
Apesar da sua inserção sistemática no título VIII do CPTA dedicado ao processo executivo, o artigo 161º, como tem sido salientado pela doutrina, tem natureza essencialmente substantiva, dizendo respeito, em primeira linha, a relações que no plano extrajudicial se desenvolvam entre a Administração e os particulares, quando estes pretendam que ela proceda em seu favor à extensão dos efeitos de sentenças proferidas em benefício de outrem, só assumindo alcance processual nos nºs 4 e 6.
O instituto da extensão de efeitos da sentença tem sido questionado nos nossos tribunais sobre a sua constitucionalidade. Passemos então à análise de um caso concreto que ocorreu e foi alvo de acção judicial para melhor compreender esta questão. A Comissão de Inscrição de técnicos oficiais de contas(RR) recorreu para o pleno da 1ª secção do Supremo Tribunal Administrativo da decisão proferida na 1ª subsecção do mesmo tribunal que determinou a aplicação do mecanismo do artigo 161º CPTA, estendendo os efeitos de uma outra decisão sobre matéria idêntica aos requerentes(AA), os quais tinham solicitado a sua inscrição junto da ATC como técnicos oficiais de contas, a qual tinha sido recusada, não tendo os requerentes impugnado contenciosamente o acto de recusa.  
A recorrente veio invocar a inconstitucionalidade do artigo 161º com fundamento na “violação dos princípios do Estado de Direito, na sua vertente da protecção da segurança jurídica e da protecção da confiança e o princípio da igualdade, plasmados respectivamente nos artigos 2º e 13º da Constituição da República Portuguesa”. Na opinião da recorrente, a opção tomada pelo legislador viola a confiança que a Administração deve poder pôr na estabilidade das relações administrativas e nos seus efeitos. Além disso, traduz um benefício concedido em favor dos que perante um acto desfavorável, ficaram passivos e não reagiram judicialmente dentro do prazo legal para tanto fixado, tratando-se de forma desigual face àqueles particulares. Acrescenta ainda a recorrente que “o artigo 161º está pensado para casos de actos administrativos com uma pluralidade de destinatários, e não como é o caso, para actos administrativos distintos”.
O STA, em acórdão, veio negar provimento ao recurso em causa. Nesse sentido, refere o mesmo acórdão que, é verdade que a eficácia de um acto administrativo inimpugnável, e que por isso gozava de alguma estabilidade na ordem jurídica, possa vir a ser inutilizada pela aplicação do instituto da extensão de efeitos da sentença. No entanto, isso não significa uma intolerável quebra da confiança na estabilidade das relações jurídicas inerente a um Estado de Direito.
A introdução do artigo 161º, não consubstancia uma ruptura inesperada do caso decidido (administrativo), uma vez que sempre se admitiram hipóteses em que o caso decidido não gozava de total protecção. “Nem sequer os actos favoráveis, constitutivos de direitos, não impugnados têm essa protecção, pois podem ser revogados com fundamento em ilegalidade no prazo de um ano, nos termos do artigo 141º, nº1 do CPA”. O acórdão prossegue ainda com fundamentação na doutrina do professor Freitas do Amaral e Marcello Caetano que já antes da reforma defendiam a eficácia “erga omnes” de certo tipo de sentenças anulatórias.
Na delimitação do caso julgado anulatório de acto administrativo encontra-se a ideia de que sob pena de contradição insanável, “ o mesmo acto não pode ser perante a mesma ordem jurídica, simultaneamente nulo para uns e válido para outros”, havendo casos em que a estabilização dos efeitos de um acto consolidado seria de pura contradição, levando a que o acto fosse e não fosse válido ao mesmo tempo. Valem também aqui as razões do artigo 497º, nº2 do CPC, que impedem que o tribunal seja colocado na situação de se contradizer.
Especificamente quanto ao princípio da igualdade, o acórdão considerou que o preceito em causa não violava o princípio da igualdade, considerando que “ a argumentação da recorrente relativamente à violação do princípio da igualdade é de resto perversa, pois a razão de ser da extensão de efeitos do caso julgado regulada no art.161º do CPTA é precisamente a de dar tratamento substancialmente igual a quem se encontra na mesma situação jurídica”.
A recorrente não conformada com esta decisão, recorreu para o Tribunal Constitucional insistindo na inconstitucionalidade do instituto da extensão de efeitos da sentença, com os mesmos fundamentos. O TC veio confirmar a decisão dos anteriores tribunais recorridos, arguindo que a extensão de efeitos trata de, efectivamente, estender o efeito anulatório que foi judicialmente decretado em relação aos actos impugnados noutros processos por sentenças transitadas em julgado, ao caso do interessado na extensão de efeitos, e portanto, ao acto que o afecta e que não foi impugnado naqueles processos. Daqui resulta, e ao contrário do que tinha sido invocado pela recorrente, que a aplicabilidade do instituto não está circunscrita aos actos administrativos plurais. O preceito não visa aplicar-se às situações de actos administrativos com destinatário plural ou indeterminado, mas a quaisquer actos administrativos que tenham colocado o interessado em situação jurídica idêntica à dos destinatários de outros actos que já foram contenciosamente anulados. “É no pedido de extensão de efeitos que o interessado vai agir contra o acto que o lesou e é a decisão da extensão de efeitos que vai anular o acto em causa, com base no prévio reconhecimento da identidade de situações em presença e do preenchimento dos demais pressupostos da extensão de efeitos.
Quanto à violação do princípio do Estado de Direito e do princípio da igualdade, diz o acórdão que “o caso julgado, configurando-se como um valor constitucionalmente relevante, deverá dispor de um grau de protecção, em termos e a sua ultrapassagem só ser aceitável dentro de uma lógica de balanceamento ou ponderação com outros interesses dotados, também eles, de tutela constitucional (…) ora o denominado caso decidido (administrativo) seguramente não merece protecção constitucional mais intensa que o caso julgado (judicial)”. Deste modo, admitem-se quebras à tendencial estabilidade das relações jurídicas definidas por actos administrativos consolidados, desde que outros valores constitucionais relevantes tal justifiquem. Para além disso, da não impugnação de um acto administrativo desfavorável no prazo legal não se segue imediatamente a formação de caso decidido, nem muito menos dela decorre a sanação do vício ou a convalidação do acto.
Não se deve entender também o decurso do prazo de impugnação como uma forma de aceitação do acto, pois como refere vieira de Andrade, nunca o decurso do tempo poderia ser entendido como uma manifestação de vontade (que a aceitação sempre pressupõe), nem o facto do não exercício do direito nesse tempo poderia significar uma conformação com os efeitos do acto.
Por outro lado, a determinação em concreto das situações consolidadas não é uma questão resolvida pelo texto constitucional, cabendo neste domínio uma ampla margem de conformação ao legislador ordinário, designadamente quanto à definição das condições de constituição de caso decidido, aos seus efeitos e aos requisitos da sua modificabilidade.
A possibilidade de, apesar do decurso do prazo de impugnação, o interessado ver-lhe ser reconhecido pelo mecanismo de extensão dos efeitos de sentenças proferidas em situações perfeitamente iguais o direito por aquele acto negado, é ditada por preocupações, constitucionalmente relevantes, de justiça material e de tratamento igual de situações substancialmente iguais. Esta última consideração reforça a não verificação da alegada violação do princípio da igualdade, pois, como dispõe a jurisprudência assente e reiterada do TC, “ o princípio da igualdade não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam estabelecer diferenciações de tratamento razoável, racional e objectivamente fundadas, sob pena de, assim não sucedendo, estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes (…). Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada”.
O regime legal questionado, não surge como arbitrário, nem desrazoável ou injustificado, antes busca alcançar um tratamento substancialmente idêntico para situações substancialmente idênticas, com sacrifício justificado da relativa estabilidade dos actos administrativos cujo prazo de impugnação já decorreu.

Os acórdãos referidos são: o acórdão do STA de 13/11/2007 e o acórdão do TC nº370/2008

Inês Oliveira
Nº18165

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