quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

“Directiva Recursos I” e sua respectiva transposição para o direito português



“Directiva Recursos I” e sua respectiva transposição para o direito português

 A formação e aperfeiçoamento de um Direito processual administrativo europeu levou a que se fosse dando progressivamente uma refundação dos Direitos processuais administrativos nacionais, dado que essa mesma construção do Direito processual administrativo europeu acarretou um gradual estreitamento dos pontos de contacto entre este e os Direitos processuais administrativos nacionais. Sendo que esta refundação deu-se muitas vezes a partir de “sugestões” oriundas do direito europeu, não havendo dúvida no entanto que este acabou por em boa medida estabelecer a conformação dos regimes processuais administrativos nacionais.

 Nesta sede, importa sobretudo destacar a área da contratação pública, não existindo dúvida que foi um dos âmbitos em que mais se sente a ligação e actuação do Direito processual administrativo europeu; ora não há que esconder que este interesse do Direito europeu pela regulação do Direito dos contratos da Administração nos Estados-Membros não é desinteressada, visto que uma parte notável do volume de negócios das empresas que actuam no âmbito do mercado único europeu deriva de contratos celebrados com as Administrações nacionais dos diversos Estados-Membros (de acordo com estimativas divulgadas pela Comissão Europeia, o valor dos contratos da Administração pública corresponde entre 7% a 10% do PIB da UE). Logo não é de difícil percepção a conexão distinta que se estabeleceu entre o Direito processual administrativo europeu e o direito contratual no âmbito das administrações públicas, sendo que o impulso dado por parte da UE tem sido claramente no sentido de promover um sucessivo esbatimento de fronteiras entre Direito público e Direito privado, tentando potenciar o mais possível a cooperação, das mais diversas formas, entre o Estado-Administração e os particulares.

 A falta de harmonização das regras de procedimento administrativo em sede de contratação pública levaria a existência de uma interferência prejudicial a uma ampla realização dos objectivos prosseguidos com a instituição das quatro liberdades comunitárias, beneficiando, a ser assim, as empresas competidoras que fossem da nacionalidade do Estado adjudicante, em prejuízo das empresas competidoras de outros Estados-Membros, podendo ainda dizer-se que essa situação pode incentivar a existência de conluios entre as entidades adjudicantes e certas empresas concorrentes, ficando o interesse público muito prejudicado; logo a unificação do Direito processual em sede de contratação pública a nível europeu concorre de forma evidente, para uma maior eficiência no exercício da função administrativa e defesa do respectivo interesse público de cada um dos Estados-Membros.

 A legislação europeia, ciente destes riscos, desde logo se preocupou em fixar normas comuns que deveriam ser cumpridas pelos Estados-Membros. No entanto, não há dúvida que o que foi feito a nível europeu nesta matéria, demonstrou ser insuficiente para alcançar os objectivos que se pretendiam alcançar. Na verdade, a unificação europeia pretendida das regras procedimentais administrativas de contratação pública, acha-se muitíssimo limitada à fase pré-contratual, uma vez que existe uma tendencial liberdade legislativa, por parte dos Estados-Membros em relação à fase de execução dos contratos administrativos. Não obstante, não se pode deixar de frisar que ainda que não esteja em vigor Direito administrativo europeu positivo sobre esta questão, os regimes processuais nacionais continuam vinculados aos princípios gerais e à jurisprudência do TJUE, naturalmente mesmo em relação à fase de execução dos contratos administrativos.

 Numa tentativa de assegurar a convergência efectiva dos direitos administrativos nacionais, foi aprovada a Directiva (CEE) nº 89/665, de 21 Dezembro de 1989 (também denominada por “Directiva Recursos I”), a própria directiva nos seus considerandos, destacava que uma inexistência de convergência efectiva dos sistemas processuais administrativos dos Estados-Membros acarreta uma manifesta contracção e dificuldade das empresas comunitárias a tentarem competir em concursos públicos em que a entidade adjudicante pertença a Estado-Membro que não o da sua própria nacionalidade. Esta “Directiva Recursos I” obriga a que os Estados-Membros adoptem as regras processuais administrativas essenciais a uma decisão jurisdicional célere e efectiva dos litígios que giram em torno da contratação pública (art. 1º). Algumas das principais novidades introduzidas pela referida Directiva foram: o dever de adopção de medidas provisórias, mediante procedimentos urgentes, destinadas a corrigir a alegada violação ou a impedir a provocação de danos aos interesses em causa (alínea a) do nº1 do art. 2º); o dever de anular as decisões ilegais, designadamente mediante a supressão das especificações técnicas, económicas ou financeiras discriminatórias que constem dos documentos do concurso, dos cadernos de encargos ou de qualquer outro documento relacionado com o processo de adjudicação do contrato em causa (alínea b) do nº 1 do art.2º); o dever de indemnizar os particulares lesados (alínea c) do nº 1 do art. 2º).

 A “Directiva Recursos I”, é claro exemplo, da primazia evidente concedida pela UE neste âmbito ao método da harmonização dos Direitos processuais administrativos nacionais, sendo esta conclusão fácil de extrair, dado o vasto leque de possibilidades concedidas aos Estados-Membros no âmbito da respectiva transposição da Directiva; quer quanto à fixação das entidades com competência para apreciar o recurso (nº2 art. 2º), quer quanto à ponderação dos interesses colocados em causa pela decretação de medida provisória (nº4 do art. 2º), quer ainda quanto à colocação de uma acção de impugnação como preliminar de um pedido de indemnização cível (nº5 art.2º) ou mesmo quanto à limitação do poder jurisdicional à concessão de indemnizações, nos casos em que o contrato já haja sido celebrado (nº6 do art. 2º).

 É agora essencial explicar que o art. 2º nº3 da “Directiva Recursos I”, relativo às consequências da instauração de uma acção de impugnação de actos administrativos efectuados no âmbito de procedimentos de celebração de contratos com a Administração está estruturado de forma claramente incoerente e contraditória em relação aos restantes números do referido art. da Directiva (atrás explicitados). Ora no meu entender, esta clara divergência demonstra que o legislador europeu pretendeu de facto e conscientemente sublinhar essa evidente diferença.
Temos que desta forma, e presumindo que o legislador se manifestou de forma correcta, concluir que a expressão “não devem ter necessariamente efeitos suspensivos automáticos” presente no nº3 do art. 2º da Directiva em análise, sustentados num raciocínio lógico e “a contrario”, que a regra geral em sede de contratação pública terá que consistir naturalmente na suspensão automática dos efeitos do acto administrativo destacável, por mera instauração da competente acção.
E isto porque a o referido art. ao conceder que não é absolutamente necessário que a impugnação do um acto administrativo destacável implique um efeito suspensivo automático, a Directiva acaba por permitir concluir que, dados os prejuízos que a celebração e a execução poderão efectivamente causar ao efeito útil da decisão, que é o que se pretende defender com este regime, a proferir na acção principal, impõe-se assim como regra de principio a suspensão automática dos efeitos dos actos impugnados.

 Cabe agora perceber se o nosso ordenamento jurídico, no vigente CPTA assegurou de forma eficaz e plena a transposição da “Directivas recursos I”. Ora os arts. 100º a 103º do CPTA estatuem a existência de um meio processual urgente, de natureza principal, que visa a impugnação célere de quaisquer actos administrativos que ocorram na fase formativa dos contratos de empreitada, concessão de obras publicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens.

 Ora é agora relevante tentar compreender se de facto a posição do Prof. Vieira de Andrade, que invoca a desconformidade dos arts. 100º a 103º do CPTA em relação ao Direito processual administrativo europeu, uma vez que segundo o referido Prof. sendo estes arts. apenas aplicáveis aos contratos que se encontram abrangidos pelas Directivas relativas à contratação publica, então violariam o principio da paridade de tratamento.

 Já de acordo com o Prof. Miguel Prata Roque os arts. 100º a 103º do CPTA não se cingem apenas aos contratos administrativos previstos nas “Directivas Recursos”, uma vez que estas apenas são aplicáveis aos contratos que correspondam ou ultrapassem os limiares fixados pelo Regulamento (CE) nº 1177/2009 de 30 de Novembro. Logo os arts. referidos aplicam-se, inclusive, aos contratos cujos montantes a contratar sejam inferiores aos limiares mínimos que geram a aplicação do regime processual administrativo previsto nas “Directivas Recursos”, pelo que como tal possuem um âmbito de aplicação mais vasto do que o das Directivas.

 Na fase pré-contratual, quando esteja em causa a impugnação de actos administrativos, o Direito processual administrativo português assegura que a parte processual, na melhor das hipóteses, possa obter uma decisão jurisdicional definitiva dentro de um prazo de 30 dias. No entanto, quando se colocam questões de interpretação, validade ou execução de contratos cuja avaliação pertença a jurisdição administrativa, o autor apenas pode obter a suspensão da execução do contrato mediante requerimento de decretação de uma providência cautelar administrativa.

 Ora tendo em conta o acima exposto, e dado o corpo (e sua respectiva interpretação acima explicitada) do art. 2º nº3 da “Directiva Recursos I”, não nos podemos deixar de questionar se a inexistência de efeito suspensivo automático da execução dos contratos administrativos, por efeito de instauração da competente acção de impugnação, não configura uma clara infracção, por omissão, do Direito processual administrativo europeu. Pois penso que essa infracção é evidente, basta pensar que a plena execução de determinado contrato administrativo, no decurso de uma acção que vise a sua apreciação, implicará a privação do efeito útil da decisão a proferir na acção principal. Penso ainda, que o tradicional argumento de que o espaço de aplicação das “Directivas Recursos” é limitado à fase pré-contratual não procede de forma alguma, uma vez que, ainda que tal seja verdadeiro, não deixa também de ser verdade, que os Princípios gerais de Direito e a Jurisprudência consolidada do TJUE exigem a garantia de efeito útil do Direito da UE, como não poderia deixar de ser.
Agora não há qualquer duvida de que, ainda que não se refiram explicitamente à fase de execução de contratos administrativos, as “Directivas Recursos” demonstram bem que, no espaço de aplicação do Direito administrativo europeu dos contratos, os critérios de sindicância da legalidade daqueles são bem mais rigorosos e intensos do que os aplicáveis às demais relações jurídico-administrativas, tendo em conta a sua directa intervenção e ingerência no objectivo da plena realização do mercado interno. Assim, o Direito processual administrativo europeu deve ser interpretado de maneira a considerar as especificidades e necessidades essenciais do Direito administrativo dos contratos, exigindo assim uma especial tutela das posições subjectivas dos concorrentes e contratantes.

 Não me parece que seja válida, igualmente, a arguição de que a suspensão automática da execução dos contratos administrativos pode pôr em “check” as próprias funções prestadoras do Estado-Administração, o que segundo esta linha de raciocínio levaria à interrupção de inúmeros contratos de empreitada de obras publicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens.
A ser assim, por força das sucessivas vagas de privatização, a que temos assistido, de várias funções tradicionalmente consideradas como do Estado, e do recurso à colaboração dos particulares no exercício da função administrativa, a definição da lei processual administrativa ficaria assim na dependência da preservação dos efeitos jurídicos de contratos celebrados com particulares, por força da incapacidade dos serviços públicos para fornecer os bens necessários ao provimento das necessidades de interesse geral. Isto, a ser verdade, denotaria que, em vez de proteger o interesse público, a lei processual administrativa serviria para proteger o interesse privado dos particulares, que conseguissem firmar contratos com a administração pública.
Se o propósito de evitar os riscos que decorrem da progressiva privatização das funções “essenciais” do Estado, é o principal fundamento da inexistência de consagração do efeito suspensivo automático, então não se descortinam razões para alarme, quando seja forçoso, podem sempre a Administração e o beneficiário do contrato administrativo utilizar da faculdade processual de requerer a execução provisória do contrato, mediante a determinação de uma providência cautelar positiva.

Carlos Neves, aluno nº 18047

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